Quem ama não teme

Quem ama não teme (Never fear, EUA, 1949), de Ida Lupino. O filme abre com a tradicional sequência do gênero musical: um casal de jovens dançarinos se apresenta em um nightclub da Califórnia. A sequência, belamente coreografada, destaca Carol Williams (Sally Forrest), de pernas exuberantes, gestos graciosos e um olhar apaixonado para seu par dançante, Guy Richards (Keefe Brasselle). O casal tem uma promissora carreira pela frente, Guy compondo e coreografando, Sally se afirmando como dançarina. Pouco depois, Carol passa mal, é internada e diagnosticada com poliomielite. É o fim de sua carreira precoce e, possivelmente, de seu caso de amor com Guy. 

Ida Lupino dirigiu apenas seis filmes, uma das únicas mulheres a ter esse privilégio durante a chamada era do cinema clássico americano, entre os anos 30 e 60. A maioria de seus filmes trazem protagonistas femininas fortes, humanas, que em alguns momentos se entregam à fatalidade, mas se erguem e lutam. É o caso de Carol (espécie de biografia de Ida Lupino que também sofreu com a pólio na infância). 

A narrativa está impregnada de cores reais no processo da doença da dançarina, retratando de forma vívida o drama dos cadeirantes e o sofrimento físico e emocional diário a que são submetidos nos hospitais de reabilitação. Um dos pontos fortes da trama está na amizade entre Carol e Len Randall (Hugh O’Brien). Os dois são cadeirantes e estão internados no mesmo hospital. Len tem um ar jovial, otimista, alegre, ajuda a todos, ao contrário de Sally, entregue à tristeza e à depressão. Entre os dois, Sally é a única com possibilidades de cura, mas é Len quem se esforça ao máximo nos exercícios, demonstrando uma esperança contagiante. O olhar e a direção sensível de Ida Lupino transformam essa luta cotidiana em gestos de amizade, amor e companheirismo.

O bígamo

O filme abre com o casal Harry Graham e Eve em uma entrevista para adoção de uma criança. Estão na faixa dos quarenta anos, são profissionais de sucesso e a adoção é o sonho da esposa. Harry reluta, mostra-se apreensivo, reticente, Edmund Gwenn, o entrevistador remarca a entrevista e, perspicaz como um detetive, passa a investigar Harry. A descoberta não tarda a acontecer. Harry viaja muito a trabalho e, certo dia, ao abrir a porta de sua outra residência, se depara com Edmund. O som de uma criança recém nascida ressoa ao fundo e Phyllis entra em cena. 

O título já revela ao espectador o tema da trama, portanto, não é surpresa a descoberta. A partir desse momento, O bígamo se transforma em um profundo estudo de personagens. Em flash back, Harry conta como conheceu Phyllis e a engravidou. Narrativa paralela revela o crescente distanciamento que vive com a esposa original, motivado, em grande parte, pelos anos de casamento, pela dedicação à vida profissional, a rotina e o tempo que transformam inúmeros casais em apenas amigos. 

O trunfo do filme é a dissecação dolorosa das escolhas de Harry, sua paixão por Phyllis, seu respeito pelo longo casamento, um remorso lento e diário que corrói sua integridade. Ida Lupino não escolhe julgar Harry, nem suas esposas, coloca em pauta a complexidade da alma humana, os erros inerentes à condição de existir, de se entregar a momentos ternos como a troca de um olhar em um parque. Espero que, nem mesmo o espectador, se sinta capaz de julgar nem um dos personagens. 

O bígamo (The bigamist, EUA, 1953), de Ida Lupino. Com Joan Fontaine (Eva Graham), Ida Lupino (Phyllis Martin), Edmond O’Brien (Harry Graham), Edmund Gwenn (Sr. Jordan). 

Mãe solteira

Sally, uma jovem e ingênua garçonete, se apaixona pelo pianista que toca onde ela trabalha. O caso resulta em uma gravidez, mas o pianista muda de cidade, em busca do seu sonho de ser compositor. A jovem vai à sua procura, mas é renegada e abandonada. Desesperada, sua decisão é se internar em uma instituição que cuida de jovens solteiras grávidas e buscam pais adotivos para as crianças. 

Mãe solteira é o primeiro filme dirigido pela consagrada Ida Lupino. Ela assumiu o filme durante as filmagens, substituindo Elmer Clifton, que sofreu um ataque cardíaco. Lupino tinha 31 anos e foi responsável pelo roteiro do filme, além de atuar como co-produtora.  

Lupino impôs um olhar feminino ao drama de Sally, sofrendo com o abandono e as angústias quase insuportáveis da sua decisão de ceder o filho para adoção. Uma característica marcante de Mãe solteira, fruto da experiência da diretora como atriz no cinema clássico americano, é a narrativa visual, com momentos dramáticos transmitidos por planos longos e pela montagem com cortes secos e precisos.  

Mãe solteira (Not wanted, EUA, 1949), de Ida Lupino e Elmer Clifton. Com Sally Forrest (Sally Kelton), Keefe Brasselle (Drew Baxter), Leo Penn (Steve Ryan).

Anjos rebeldes

As adolescente Mary e Rachel se conhecem em um trem repleto de jovens a caminho de um colégio interno administrado por freiras. A amizade começa e segue no colégio marcada por atos rebeldes, principalmente contra a Madre Superiora, pois enxergam nela a mentora das rígidas convenções que cercam as internas. 

A comédia de Ida Lupino traz um tema caro ao cinema: o rito de passagem da adolescência para a vida adulta. A bela amizade entre Mary e Rachel vai se confrontar com as escolhas inerentes ao amadurecimento, ao descobrimento de sentimentos ocultos, que se afloram em gestos simples, como se doar ao outro. Rosalind Russell cativa e comove como a rígida Madre Superiora que enternece a todos à medida que revela sua face doce e amorosa.

Anjos rebeldes (The trouble with angels, EUA, 1966), de Ida Lupino. Com Rosalind Russell (Madre Superiora), Hayley Mills (Mary) , June Harding (Rachel).

O mundo odeia-me

O começo do filme é assustador. A câmera foca apenas os pés de um homem na estrada, pedindo carona. Carros atendem ao pedido e motoristas e passageiros são assassinados pelo caroneiro. Ouvem-se apenas tiros, gritos de mulher, os pés voltam para a estrada. 

Ida Lupino, única mulher a dirigir no sistema de estúdios em Hollywood na década de 50, realizou um thriller composto por, praticamente, três personagens. Após os assassinatos nos primeiros minutos, Emmett Myers consegue carona com Ray e Frank, dois amigos que rumam para uma pescaria. Sentado no banco de trás, Emmett força os amigos a empreenderem uma jornada por cerca de 800 km, a caminho de um barco no litoral. 

Impressiona a passividade de Ray e Frank que, enquanto dirigem, se sujeitam às ameaças, agressões e tenebrosas brincadeiras de Emmett. Em uma das paradas, o assassino testa a pontaria de Frank, exigindo que ele atire à distância em uma lata que está na mão de seu amigo Ray. O que sobressai no filme é a mente doentia do caroneiro, enquanto os dois amigos simplesmente aguardam o momento de serem executados. 

O mundo odeia-me (The hitch-hiker, EUA, 1953), de Ida Lupino. Com Edmund O’Brien (Ray Collins), Frank Lovejoy (Gilbert Bowen), William Talman (Emmett Myers).