O sacrifício

O sacrifício (Offret, Suécia, 1986), de Andrei Tarkóvski. 

No começo do filme, Aleksander (Erland Josephson) está plantando uma árvore ressecada numa faixa de grama, entre o lago e um caminho. Enquanto planta, ele diz a um menino, seu filho: “Venha aqui, me ajude, Menino. Você sabe, uma vez, isso aconteceu há muito tempo, um ancião em um mosteiro – seu nome era Pamve – cravou da mesma forma, em cima de uma montanha, uma árvore seca e ordenou ao seu discípulo, o monge Ioann Kólov – o mosteiro era católico ortodoxo -, ordenou a ele para regar essa árvore todos os dias até que ela ressuscitasse… Coloque as pedras aqui… E assim, durante muitos anos todos os dias, pela manhã, Ioann enchia um balde com água e partia para a montanha, regava esse  tronco e, à noite, voltava para o mosteiro no escuro. E assim foi por três anos inteiros. Eis que, um belo dia, ele sobe a montanha e observa: sua árvore estava toda coberta de flores… De qualquer jeito, falem o que quiser, mas o método, o sistema é uma coisa grandiosa! Você sabe, às vezes me parece que, se a cada dia, na mesma hora, se fizer a mesma ação – como um ritual – sistemática e invariavelmente -, cada dia, exatamente na mesma hora, sem falta – o mundo vai mudar. Alguma coisa vai mudar! Não pode deixar de mudar!”

Segundo Larissa Tarkovskaya, segunda esposa de Andrei Tarkovsky, o roteiro de O sacrifício foi escrito a partir de dois roteiros  que Tarkovsky escreveu no final dos anos 70, intitulados A bruxa e A oferenda

No dia em que planta a árvore, Aleksander, um jornalista, crítico de literatura e de teatro aposentado, reúne a família em sua casa, situada em uma ilha sueca, para celebrar seu aniversário. Assistindo à TV,  todos ficam sabendo que estourou a Terceira Guerra Mundial e a catástrofe nuclear é iminente.

Aleksander, apesar de ter perdido a fé, promete a Deus um sacrifício se o mundo for poupado: “Eu entrego para o senhor tudo o que tenho, abandono a família que amo, destruo minha casa, deixo o Menino, vou ficar mudo, nunca mais irei falar com ninguém, recuso tudo o que me conecta com a vida. Apenas faça que tudo volte a ser como antes, como estava de manhã, como estava ontem, para que não haja esse medo animalesco e nauseante! Ajude, Deus, e eu faço tudo o que prometi ao Senhor.”

Mais tarde, Aleksander é incentivado pelo carteiro Otto a procurar Maria, uma empregada doméstica com poderes místicos: o ato de união sexual com ela poderia salvar a todos. A oferenda e a bruxa. 

O sacrifício de Aleksander se concretiza na espetacular sequência final do filme. Aleksander põe fogo na própria casa. Tarkovsky filmou em um plano sequência em travelling de dez minutos, após a equipe incendiar a casa. A história é famosa: o primeiro plano sequência travou no meio e a equipe teve que reconstruir a casa em tamanho real para um novo incêndio. Na segunda tomada, o plano sequência, desta vez filmado com duas câmeras, teve sucesso.

No final do filme, o menino está sozinho à beira do lago. Ele repete o gesto de encher baldes e molhar a muda, plantada na véspera.. “Será que o homem tem alguma esperança de sobrevivência diante dos claros sinais de silêncio apocalíptico iminente? Talvez uma resposta para essa pergunta deva ser encontrada na lenda da árvore ressequida, desprovida da água da vida, na qual baseei esse filme que tem tamanha importância em minha biografia artística: o Monge, passo após passo e balde após balde, sobe a colina para regar a árvore seca, acreditando implicitamente que seu ato era necessário e em nenhum momento duvidando da sua crença no poder milagroso da sua fé em Deus. Viveu para assistir ao Milagre: certa manhã, a árvore explode em vida, os ramos cobertos de folhas novas. E esse ‘milagre’, sem dúvida, nada mais é que a verdade.” – Tarkovski. 

Referências: 

O sacrifício. Roteiro do filme de Andrei Tarkovsky. Andrei Tarkovski. São Paulo: Realizações Editora, 2012.


Tarkovski. Eterno retorno. Phillipe Ratton (organização). Belo Horizonte: Fundação Clóvis Salgado, 2017

Da eternidade

Da eternidade (About endlessness, Suécia, 2019), de Roy Andersson. 

A abertura do filme é puro cinema de poesia. Um casal abraçado flutua entre as nuvens. O homem enlaça a mulher por trás, como a protegê-la. Ela acaricia os braços dele. Corta para um casal sentado em um banco, olhando para a cidade. 

O filme do subversivo diretor sueco é uma série de curtas, retratando momentos comuns do cotidiano: um pai amarra os cadarços da filha, adolescentes dançam em frente a um café, um exército marcha para um campo de prisioneiros, um homem conversa com a câmera na saída do metrô sobre um desafeto que nunca o cumprimenta. O tempo se confunde entre o passado e o presente, uma narradora enigmática diz sobre esses momentos: “Eu vi um homem que queria surpreender sua esposa com um bom jantar.”

O cinema de Roy Andersson é assim, subversivo, deslumbrante, formado por imagens que parecem saídas dos sonhos. Assim como a poesia. 

Pleasure

Bella sai da Suécia para Los Angeles com um sonho: ser uma estrela de filmes pornô. Ela faz contatos e rapidamente passa a participar dos sets, mas, de início, impõe certos limites aos tipos de relacionamentos, tentando se preservar até alcançar o topo. No entanto, Bella se vê obrigada a fazer mais e mais concessões, se enveredando em uma rede perversa de exploração sexual. 

Pleasure é o filme de estreia da diretora sueca Ninja Thyberg. Através da trajetória de Bella no mundo, ou submundo, das produções pornôs, a diretora compõe um painel triste da ambição humana, da exploração cruel da indústria cinematográfica pornô. A transformação da personagem de Sofia Kappel (atuação intensa, visceral), testando os limites de seu corpo, é marcante. 

Pleasure (Suécia, 2021), de Ninja Thyberg.Com Sofia Kappel (Bella), Zelda Morrison (Joy), Evelyn Claire (Ava), Chris Cock (Bear), Jason Toler (Mike). 

Força maior

O casal Tomas e Ebba passa férias em uma estação de esqui junto com seus dois filhos, as crianças Vera e Harry. Durante um almoço no restaurante do hotel, uma pequena avalanche provoca correria no restaurante. Passado o susto, a relação do casal entra em uma espiral de crise, provocada pela atitude de Tomas durante a avalanche. 

O diretor Ruben Ostlund já conquistou por duas vezes a Palma de Ouro em Cannes com The square: a arte da discórdia (2017) e Triangle of sadness (2022). O apuro visual e os planos lentos, marca do diretor sueco, são o destaque de Força maior, uma profunda e, por vezes, divertida, discussão a respeito da masculinidade. Os longos silêncios durante as práticas de esqui nas montanhas, fotografadas em uma perturbadora claridade, reforçam a sensação de progressiva crise depressiva que acompanha Tomas e Vera.

Força maior (Turist, Suécia, 2014 ), de Ruben Ostlund. Com Johannes Bah Kuhnke (Tomas), Lisa Loven Kongsli (Ebba), Clara Wettergren (Vera), Vincent Wettergren (Harry), Kristofer Hivju (Matts), Fanni Metelius (Fanny). 

Dirigido por Andrei Tarkovski

O documentário foi realizado durante as filmagens de O sacrifício (1986), na Suécia. É um retrato fascinante do processo de criação e realização de um dos diretores mais autorais, intimistas, do cinema. As cenas mostram Tarkovski envolvido em todas as etapas da produção: discutindo aspectos da direção de arte, do cenário, conversando com os atores, às vezes, simulando ele mesmo cenas para expressar seu desejo na interpretação. 

As sequências das filmagens são intercaladas com depoimentos de Larissa Tarkovskaja, esposa do diretor, que lê trechos do diário do marido, de conversas do diretor em palestras que proferiu, de suas reflexões sobre o cinema e a vida, deixando claro que nos filmes do cineasta russo não existe separação entre a arte e sua vida.

“Você pergunta que relacionamento ele tinha com a casa dele. A casa era muito importante para ele. E, como  pôde ver, ele colocou nossa casa em cada um de seus filmes. O interior, a sensação, a alma de nossa casa. Não exatamente como uma fotografia. Afinal de contas, isto é arte. Ele usou outras formas e outros personagens além de nós. Mesmo assim, sua vida e sua casa estão presentes em cada filme. Sentimos muita falta de nossa casa durante os cinco anos que ficamos no ocidente. Esta foi nossa primeira casa e ele a adorava e trabalhava muito bem lá. Ele costumava desenhar sempre a casa. Ele escreveu. Estou descansando aqui há três dias, mas sinto que recuperei um ano inteiro. Agora, posso trabalhar. Mas onde há trabalho a ser feito? Em ‘O sacrifício’ ele contou a história de como encontramos a casa. Foi exatamente como o homem contou ao seu filho que, na verdade, é nosso filho mais novo, Andryushka.” – Larissa Tarkovskaja

Um dos grandes destaques do documentário é o conflito que aconteceu após as filmagens da sequência final, o incêndio da casa do protagonista. Preparativos meticulosos foram necessários, pois a casa/cenário foi realmente incendiada para ser gravada em um longo plano-sequência. No entanto, a câmera travou por alguns segundos durante a filmagem. Tarkovski não admitiu editar a sequência, ameaçando, inclusive, que o filme não seria lançado caso não fosse possível repetir a filmagem. A equipe conseguiu financiamento para reconstruir a casa e o diretor de fotografia Sven Nykvist resolveu usar duas câmeras, em dois trilhos, um mais elevado do que outro, como segurança. Tudo deu certo, as imagens mostram a equipe exultante e um Tarkovski pleno de emoções indefiníveis após a palavra “corta”.  

O final, emocionante, mostra Tarkovski durante o processo de tratamento do câncer que o mataria, poucos meses após as conclusões de O sacrifício, já acamado, discutindo com a equipe aspectos de pós-produção do filme, como o tratamento de cor. Com certeza, Dirigido por Tarkovski é um dos melhores documentários sobre o cinema já realizados. 

Dirigido por Andrei Tarkovski (Regi: Andrei Tarkovski, Suécia, 1988), de Michal Leszczylowski.

A carruagem fantasma

O estranho sonho que abre Morangos silvestres (1957), de Ingmar Bergman, quando o professor vê um caixão caindo da carruagem na rua, é referência a este clássico do cinema sueco. A carruagem fantasma trata do sobrenatural: três homens, na noite de ano novo, bebem em um cemitério, pouco antes da meia-noite. David Holm conta a história do amigo que sabia que morreria na noite do ano novo e, a partir daí, seria o cocheiro, durante um ano, da carruagem fantasma. A função do cocheiro, caracterizado com o capote e a foice, metáfora visual que celebrizou a morte no cinema, é buscar a alma dos mortos no momento da passagem.

A narração do filme tem a força poética, com intrincadas fusões e sobreposições de imagens, evidenciando o tom fantasmagórico. A fotografia com nuances expressionistas, a névoa e o frio da noite determinaram um estilo para este tipo de filme. Outro destaque são os intrincados flashbacks, às vezes um dentro do outro,  rompendo a linearidade da narrativa.

A carruagem fantasma é mais um dos grandes filmes que marcaram os anos 20 do cinema mudo, a grande década do cinema. A história de David Holm, em sua luta pela redenção, propiciou ao cinema algumas imagens marcantes, como a alma do personagem se levantando de seu cadáver. A solidão deste momento é a  poética expressão da morte.

A carruagem fantasma (Korkarlen, Suécia, 1921), de Victor Sjostrom. Com Victor Sjostrom (David Holm), Hilda Borgstrom (Ingeborg Holm), Tore Svennberg.

Eu sou Ingrid Bergman

Eu sou Ingrid Bergman (Jag är Ingrid, Suécia, 2015), de Stig Bjorkman, merece lugar de honra nos documentários sobre o star-system de Hollywood. A narrativa parte de cartas escritas por Ingrid Bergman e imagens caseiras que a atriz fazia, pois tinha sempre consigo uma câmera de cinema. Os depoimentos ficam por conta da filha Pia, do primeiro casamento, e de Roberto, Ingrid e Isabella Rossellini, filhos de Ingrid Bergman com Roberto Rossellini. Amigos da atriz também contam passagens íntimas da vida desta musa do cinema.

Os filhos não poupam a mãe, revelando com sinceridade a sensação de abandono que sentiram durante toda a vida, pois os compromissos de trabalho e a vida amorosa de Ingrid sempre a afastava. Pia é quem mais sofreu, pois quando Ingrid se mudou para a Itália para viver com o diretor Roberto Rossellini, ficou nos EUA morando com o pai.

Emocionantes, os relatos e as imagens revelam uma Ingrid determinada e, às vezes, frágil. A mulher que luta para continuar atuando, razão, segundo ela, de sua vida, enfrentando o preconceito da época e a mídia feroz, que não perdoava suas escolhas amorosas. Sobre o cinema, reservo um espaço neste post para um depoimento de Ingrid sobre o seu trabalho com Ingmar Bergman no filme Sonata de outono (1978). Duas lendas do cinema, atriz e diretor, em conflito e entendimento, buscando a essência da sétima arte.

“Quando minha filha toca piano, há um close em mim. A mãe observa a filha. A única coisa que eu tinha que fazer ela vê-la tocar. Depois de algumas tomadas Ingmar veio me dizer: ‘Sobre o que está pensando?’. Eu disse: ‘Estou pensando que a coitadinha da minha filha nunca soube tocar piano, não é mesmo? Escutei um pequeno erro. Mas tudo bem, ela está tocando. Ah, não está bom.’

“Ele disse: ‘Você está pensando errado. Ela não está nem ouvindo a filha tocar. Já sabe que a filha não é pianista. Ela só a observa e lembra de quando era menina,  correndo pelo gramado de sua mãe feliz. Esperando o abraço da filha.’ Ele me fez pensar de uma maneira totalmente diferente. Isso é o que um bom diretor sabe fazer. Ele dá a você um pensamento para que possa projetá-lo.”

Face a face

É um dos filmes mais pesados, difíceis de assistir de Bergman, mas, ao fim, dialoga com nossas angústias mais profundas. Jenny Isaksson (Liv Ullmann) é psiquiatra, seu caso atual é uma jovem com tendências suicidas que a agride verbalmente. Jenny vai passar um tempo com os avós, na casa de sua infância, e tem visões noturnas com uma anciã, possivelmente sua falecida mãe. A rotina de Jenny é marcada por encontros com personagens que, assim como a médica, sofrem de perturbações.

Bergman filma tudo com uma câmera distante, quase documental. Na forte sequência em que Jenny é estuprada em um apartamento, o diretor posiciona a câmera fora do quarto, filmando pela porta aberta, deixando em quadro um homem em pé que assiste a tudo impossível e as pernas da médica que se debatem durante o ato. 

A complexa intensidade da mente humana, muitas vezes reprimida, permeia toda a narrativa. Em pauta temas como a inutilidade do tratamento psiquiátrico,  tentativas de se libertar através de ousadas incursões físicas, a mente que não acompanha a decrepitude do corpo, busca desesperada de salvação que leva à tentativas do ato extremo. Resta ao espectador assistir e se entregar às suas próprias e incompreensíveis angústias.  

Face a Face (Face to face, Suécia, 1975), de Ingmar Bergman. Com Liv Ullmann, Erland Josephson, Aino Taube, Gunnar Bjornstrand.