O gabinete do Dr. Caligari

O Dr. Caligari chega a Holstenwall, pequena cidade do interior da Alemanha, para apresentar sua atração na feira: o sonâmbulo Cesare acorda ao comando do Doutor e faz previsões assustadoras. Ao mesmo tempo, assassinatos começam a acontecer na cidade e a polícia elege Cesare o principal suspeito.

Esta narrativa mesclando policial e suspense se transformou no filme precursor do expressionismo alemão. O filme introduz as principais características estéticas que passam a dominar o gênero terror. A fotografia é estilizada, sombras assustadoras se projetam na parede. Rostos pálidos, recortados no negro, traduzem o medo. O clima gótico sobressai, recriando a noite tenebrosa das cidades. Os personagens são caricaturais, com interpretações teatrais. Por fim, o cenário é deturpado: casas amontoadas, janelas triangulares, móveis de dimensões desproporcionais, paredes sujas, quartos cubiculares, tudo remete ao mundo da arte expressionista.

Em contrapartida, Robert Wiene comanda o filme de forma conservadora, quase como se filmasse uma peça de teatro. “Surpreendentemente, Wiene, menos inovador do que a maioria dos seus colaboradores, faz pouco uso da técnica cinematográfica. (…) O filme se baseia completamente em recursos teatrais, com a câmera fixa no centro, mostrando o cenário e deixando os atores (especialmente Veidt) encarregados de todo movimento e impacto.” – 1001 filmes para ver antes de morrer

O gabinete do Dr. Caligari é um manifesto artístico nestes anos de construção da narrativa e da estética do cinema. A partir de Caligari, fotografia, iluminação, maquiagem e cenário alcançaram o status da arte nas telas do cinema. “O jogo dos atores integra-se à decoração, integrada à maquilagem e ao vestuário, integrados, por sua vez, à iluminação e aos cenários, num conjunto plástico e deformado, como se uma pintura expressionista tomasse vida e se movesse. Esta estilização de todos os elementos dramáticos do filme será designada, desde então, por caligarismo – expressionismo cinematográfico levado às últimas conseqüências.” – As sombras móveis: atualidade do cinema mudo.

O gabinete do Dr. Caligari (Das kabinett des Doktor Caligari, Alemanha, 1919), de Robert Wiene. Com Werner Krauss (Dr. Caligari), Conrad Veidt (Cesare), Friedrich Feher (Francis), Dagover Hans.

Referências:

1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor). Rio de Janeiro: Sextante, 2008

As sombras móveis: atualidades do cinema mudo. Luiz Nazário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999

Ivan, o terrível

Ivan, o Terrível é mais uma brilhante edição da Versátil, lançada na Coleção Folha Grandes Biografias do Cinema. A obra inacabada do diretor está dividida em duas partes, a terceira não foi filmada, pois Eisenstein faleceu de ataque cardíaco. O diretor foi encontrado morto em sua mesa de trabalho junto com anotações sobre as experimentações que estava fazendo com o uso da cor no filme.

A narrativa versa sobre o reinado do primeiro tsar da Rússia, Ivan Vassílievitch (1530/1584), conhecido como Ivan, o Terrível.

“Historiadores já assinalaram que tal epíteto foi produto do romantismo posterior, não do século 16, que ele não foi adotado nem pelos mais encarniçados adversários do monarca e que, na língua russa da época a palavra grozny (que hoje traduzimos por terrível) queria dizer ‘assombroso’, e até carregava conotações positivas. O fato é que, ao fim de seu longo e marcante reinado, a Rússia se afirma como Estado centralizado e poder imperial em franca expansão.” – Irineu Franco Perpetuo.

Eisenstein faz uma opção teatral na representação da história. Grande parte das três horas de duração do filme se passa em ambiente fechado, ora em espaços restritos, como quartos e corredores, ora em espaçosas dependências, como salas de reuniões e de jantares. A representação caricatural dos atores se afirma em vários momentos, com discursos e expressões próximas do grande palco. No entanto, a força do filme está nos ângulos de câmera e composições visuais próximas do expressionismo alemão. São recorrentes os grandes closes nos rostos de personagens em situações de espreita, de maquinações políticas, de assombro ou terror. Sombras projetadas nas paredes evidenciam o tom opressivo, quase fantasmagórico da trama (a exemplo do Macbeth, de Orson Welles).

“Esta extravagância em duas partes de Eisenstein sobre os males da tirania é, obviamente, uma obra magnífica, e impõe seu estilo ao espectador, mas tão despida de dimensões humanas que a vemos com uma espécie de indignação. Claro, cada fotograma é sensacional – uma brilhante coletânea de fotos de cena -, mas como filme é estático, grandioso, e frequentemente ridículo, com uma fotografia elaboradamente angulada, supercomposta, e atores supertensos, rolando os olhos, a deslizar pelas paredes, as sombras se arrastando atrás. (…) O filme é operístico – e ópera sem cantores é uma coisa esquisita. Algo de monumental parece estar para nos ser comunicado em cada grande composição estática. Arrasador em estilo, o filme é como um gigantesco mural expressionista. As figuras assemelham-se a aranhas e roedores gigantes: como na ficção científica, parece ter havido mutações. (…) Sob certos aspectos, o filme está perto do gênero de horror. É tão misterioso para os olhos e a mente americanos como o teatro kabuki, a que tem sido muitas vezes comparado.” – Pauline Kael

Ivan, o Terrível (Ivan Groznyy, URSS, 1945 e 1958), de Sergei Eisenstein. Com Nikolai Cherkasov (Ivan), Lyudmila Tselikovskaya (Anastácia), Serafima Birman (Efrosina), Mikhail Nazvanov (Andrei Kúrbski).

Referência: Ivan, o Terrível: um filme inspirado na vida de Ivan, o Terrível. Coleção Folha Grandes Biografias no Cinema. Cassio Starling Carlos, Pedro Maciel Guimarães, Irineu Franco Perpetuo. São Paulo: Folha de S.Paulo, 2016.

O homem que matou o facínora

O homem que matou o facínora (The man who shot Liberty Valance, EUA, 1962), de John Ford, não é dos meus faroestes preferidos. É difícil assistir ao filme sem se incomodar com a nítida velhice de James Stewart e John Wayne para os papéis que interpretam. Ambos já estavam perto dos sessenta anos e não combinam com “jovens” idealistas num oeste em transformação. Não gosto também do tom exageradamente caricato imposto por Ford a dois ícones do velho oeste: o xerife e o jornalista. Mas é inegável a importância de O homem que matou o facínora como releitura e marco de um gênero também em transformação. Os personagens estão longe dos perfis clássicos do gênero.

O bandido é covarde, só se agiganta diante de mulheres, bêbados e desarmados. Seu bando se esconde nas sombras do chefe. O advogado pretensamente honesto não tem escrúpulos em lucrar politicamente com a autoria de um ato heroico que não cometeu. O cowboy durão atira escondido na noite, assassinato a sangue frio, depois vai passar o resto de seus dias em torno da garrafa de uísque. Os jornalistas não publicam a verdade porque a lenda é melhor, vende mais e serve aos interesses políticos do país.

O homem que matou o facínora representa a ruptura dos símbolos do gênero. O faroeste percorre os anos 60 criando anti-heróis, mocinhas e bandidos muito mais próximos do homem comum. Ou muito mais próximos de uma realidade triste: a dos pistoleiros que matam sem escrúpulos para conquistar o oeste e depois se escondem atrás de lendas.

Ladrões de bicicleta

Ladrões de bicicleta (Ladri di biciclette, Itália, 1948), de Vittorio De Sica, é dos meus filmes favoritos. Impossível não se emocionar com diversas cenas, mesmo após inúmeras revisões. Principalmente com a sequência final. O filme termina e você percebe que não pode ficar impassível, pois o olhar de Bruno em direção ao pai faz cada espectador reafirmar ou rever princípios e valores.

O filme é o representante mais famoso do neo-realismo, movimento cinematográfico que começou na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, influenciando decisivamente o cinema mundial, a ponto de ser considerado a base do cinema moderno.

“O cinema rodado pelas ruas, os atores apanhados na rua, a realidade fixada sem manipulações e sem preconceitos (‘A realidade está lá. Por que manipulá-la?’, era o estribilho rosselliano mais citado pelos jovens críticos franceses): estas são algumas das fórmulas dentro das quais se tentou sintetizar a experiência do cinema neo-realista italiano.” – Antonio Costa.

Um dos mais impressionantes méritos de Ladrões de bicicleta é a atuação dos protagonistas. Lamberto Maggiorani (Antonio) trabalhava como operário e Enzo Staiola (Bruno) foi escolhido pelo diretor durante as filmagens. O menino observava a gravação de cenas nas ruas de Roma. A fascinante atuação é atribuída, em grande parte, ao talento de De Sica em dirigir atores, observando e incentivando os profissionais a explorarem seus principais atributos. No caso de Maggiorani e Staiola, isto significou interpretarem eles mesmos.

“Antonio não é um operário desempregado qualquer, mas ‘o operário desempregado’, quase como um paradigma vivo. Não se trata de um símbolo ou metáfora, mas de um signo, o que também se poderia dizer dos outros personagens. Porém, como tais figuras não pretendem apenas ‘representar’, mas também ‘ser’, é lógico que tenham sentimentos e não somente razões.” – Juan D. Castillo.

Neste sentido, não é difícil entender porque Ladrões de bicicleta é repetidamente citado como o filme mais encantador e adorado do cinema. A melodramática busca de Antonio e Bruno pela bicicleta nas ruas de Roma equivale ao caminho que todo cidadão comum percorre em uma grande metrópole: trabalhadores e desempregados, donzelas e prostitutas, padres e ladrões, todos se confundem nas vielas, nos cruzamentos. A câmera de De Sica reflete o cânone deste movimento subversivo no cinema.

“O roteirista Cesare Zavattini foi um dos principais nomes do movimento e um de seus mais importantes teóricos. Ele convocou os cineastas para saírem às ruas, subirem em ônibus e bondes e ‘roubarem’ as histórias do cotidiano, relatando em seu diário de guerra Diario di cinema e di vita: ‘Montemos a câmera na rua, num quarto, observemos com paciência insaciável, treinemo-nos para contemplar nossos semelhantes em seus gestos mais simples.’” –  Philip Kemp.

Bruno recolhendo do chão o chapéu do pai e o limpando, na sequência final de Ladrões de Bicicleta, é destes gestos simples do cotidiano. Revela para o coração mais empedernido toda a complexa beleza, muitas vezes triste, é verdade, que permeia as atitudes de um pai sob o olhar do filho.

REFERÊNCIAS:

Os clássicos do cinema. Juan D. Castillo (editor). Edições Altaya, 1997

Compreender o cinema. Antônio Costa. São Paulo: Globo, 1989

Tudo sobre cinema. Philip Kemp. Rio de Janeiro: Sextante, 2011.

Lumière! A aventura começa

Os irmãos Louis e Auguste Lumière passaram para a história como os inventores do cinema. Em 28 de dezembro de 1895, exibiram em uma sala de Paris dez filmes curtos. Os Irmãos já haviam inventado o cinematógrafo, dispositivo que fotografava e exibia filmes. 

A famosa exibição, com venda de ingressos, em espaço fechado, com cadeiras, tela e o consagrador facho de luz, inaugura também a sala de cinema como conhecemos. É nesta exibição que, conta a lenda, espectadores se assustaram e abandonaram o recinto em correria quando viram um trem chegando na estação (A chegada do trem na estação de Ciotat).

Jérôme Prieur, no documentário Roll on Cinema (França, 2011), acrescenta poesia a esta história: “Mas, em 1895, os Irmão Lumière roubam a cena, a ponto de todos esquecerem seus predecessores. Sem contar todos os nomes que eles ofuscaram (…). Todos jogados aos trilhos da história sob o trem do cinematógrafo Lumière. Chamar-se Lumière já é concorrência desleal.” 

Em Lumière! A aventura começa (Lumière! L’Aventure commence, França, 2016) Thierry Frémaux, diretor do Festival de Cannes, apresenta um lado não-reconhecido pela maioria dos historiadores sobre o trabalho dos Irmãos Lumière: o desenvolvimento da linguagem cinematográfica. O documentário, editado e comentado por Frémaux, reúne 108 filmes (Louis e Auguste rodaram cerca de 1.500 filmes com 50 segundos de duração), revelando que passo a passo os cinegrafistas inovaram, buscando ângulos, planos e movimentos de câmera, desenvolvendo a narrativa do cinema. Um filme registra imagens em travelling nos canais de Veneza; outros mostram planos detalhes de objetos, closes nos rostos de personagens. A saída dos Operários trabalha com profundidade de campo, uma carruagem surge do fundo e trafega atrás dos trabalhadores. Os curtas, restaurados, demonstram o cuidado dos cinegrafistas, dos Irmãos Lumière, com a composição, com a estética, ou seja, o cinema nasce como técnica e como narrativa com a força que o consagrou: a beleza das imagens.

O mercador de almas

Após ser acusado de incendiar um celeiro, Ben Quick é obrigado a deixar sua cidade. Ele desce o Rio Mississipi na barca, chegando a uma pequena cidade. Na estrada, Ben pega carona com Clara e Eula, duas garotas da poderosa família Varner. Will Varner, o patriarca, é dono de terras, estabelecimentos comerciais, comanda a família e a cidade com rigidez e autoritarismo.

O mercador de almas é baseado em dois contos de William Faulkner, escritor “especialista em retratar o calorento e pegajoso sul dos Estados Unidos, com seu clima que parece inebriar os sentimentos e afetar a índole dos seus habitantes.” – Pedro Maciel Guimarães.

O longo e quente verão do título original traduz o clima que comanda os personagens. A chegada de Ben Quick na cidade e sua relação com a família Varner leva todos ao limite da explosão. Jody Varner catalisa um misto de admiração e ódio pelo pai. A sedenta Eula não inibe sua juventude dominada pela libido. Clara Varner busca a serenidade no relacionamento com Richard, enquanto domina o desejo por Ben. Em cena ousada, Ben Quick tenta se refrescar do calor no sereno da varanda da casa dos Varner. Está apenas de cueca e se defronta com Clara, deitada, comportadamente vestida, no quarto ao lado.

Na análise de Pedro Maciel Guimarães, “O centro nervoso da ação é Paul Newman, que destila sensualidade e mistério no papel do jovem acusado de piromania. Às vezes inocente, outras dissimulado, Newman aparece no auge de seu magnetismo sexual: chapéu milimetricamente colocado sobre as madeixas claras, corpo sempre suado e camiseta branca sem mangas para valorizar a forma física.”

A bela canção The long, hot summer embala o início do filme, devaneio suave de Ben Quick descendo o Rio Mississipi. Logo, logo, as águas do rio mítico do sul dos Estados Unidos dão lugar aos incontroláveis desejos que passam a ditar o cotidiano dos personagens.

O mercador de almas (1958), de Martin Ritt. Com Paul Newman (Ben Quick), Joanne Woodward (Clara), Lee Remick (Eula), Orson Welles (Will Farner). 

Referência: Coleção Folha Grandes Astros do Cinema. Paul Newman. O mercador de almas. Vol. 17. Cássio Starling Carlos. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2014

O outro lado do vento

O filme abre com imagens do acidente de um carro, provocando a morte do diretor de cinema J. J. Hannaford (John Huston). Narrativa em flashback  reconstitui o último dia da vida deste renomado realizador que enfrenta problemas para concluir seu filme.

O outro lado do vento seria o último filme de Orson Welles, que faleceu em 1985 sem conseguir montá-lo. Foram cerca de 10 anos de filmagens, entre idas e vindas – sequências de cenas foram gravadas anos depois das primeiras tomadas. A finalização, patrocinada pela Netflix, é primorosa, fazendo jus à genialidade de Orson Welles.

As imagens envolvendo Hannaford e seu séquito, incluindo participações especiais de atores e diretores em uma festa, se alternam entre o preto e branco e cores deslumbrantes, com os ângulos de câmera inusitados de Orson Welles. No entanto, o primor estético está no filme dentro do filme. A história paralela centra no caminhar silencioso de dois belos jovens. A personagem de Oja Kodar seduz frame a frame o jovem e, a partir de determinado momento, caminha nua pelo filme. Para completar a beleza fotográfica, os jovens protagonizam uma das cenas de sexo mais eróticas da história do cinema, no banco de trás do Mustang que corta a noite chuvosa.  

O outro lado do vento (Other side of the wind, EUA, 2018), de Orson Welles. Com John Huston, Peter Bogdanovich, Oja Kodar, Susan Strasberg, Robert Randon.  

O lutador

O lutador (The wrestler, EUA, 2008), de Darren Aronofsky, é um filme mediano, destes produtos típicos do cinema contemporâneo, celebrado mais pela estratégia de marketing do que pelo valor da obra. Refiro-me à escolha de Mickey Rourke como protagonista. A indústria usou os paralelos entre a vida do ator e do personagem que interpreta para divulgar histórias de redenção individual. Rourke interpreta Randy “Carneiro” Robinson, envelhecido praticante de luta livre que é obrigado a abandonar os ringues devido a problemas de saúde. Ele busca a redenção pessoal, tentando se reconciliar com a filha, e profissional, preparando uma suicida volta aos combates.

Mickey Rourke concorreu ao Oscar de  melhor ator pelo filme o que valeu para a indústria de cinema também uma boa história de redenção, dessas que bem utilizadas pelo marketing rendem bilheterias e críticas. Rourke trabalhou em três grandes filmes na década de 80: Corpos ardentes (1981), O selvagem da motocicleta (1983) e Coração satânico (1987). Depois se perdeu em produções apelativas como 9 ½ semanas de amor (1986) e Orquídea selvagem (1989).

Começa então sua conturbada história pessoal, motivada principalmente pela decisão de abandonar a carreira para se dedicar ao boxe, atividade que deformou seu rosto. Viveu no ostracismo cinematográfico, se envolvendo em polêmicas e escândalos, até que voltou às manchetes do cinema em Sin City (2005), com uma atuação supervalorizada. O filme é mais uma experimentação gráfica do que performance de qualquer ator em cena.

Em O lutador, ele parece ter amadurecido como ator, caracterizando seu personagem com contida amargura. A grande discussão do filme é a amargura dos que vivem do passado. Há uma sequência do filme que reflete esse conflito, com perfeito uso da linguagem do cinema, especificamente do som.

Randy “Carneiro” Robinson sofre enfarte após uma luta e é forçado pelo médico a abandonar os ringues. Para sobreviver, ele consegue emprego como atendente no setor de frios de um supermercado. Randy está no banheiro do supermercado, se preparando para seu primeiro dia de trabalho. Ele anda pelo ambiente, se olha no espelho, sai pela porta. A câmera o acompanha em travelling, filmando-o de costas enquanto ele caminha pelos corredores internos do supermercado. As paredes bem próximas, ambientação escura, como em passagens subterrâneas de estádios. Ele passa pela sala, respira fundo, desce os degraus da escada, passa por funcionários empilhando caixas. Neste momento, ouve-se som ritmado de torcida cantando, como se aguardasse a entrada do astro, do ídolo. A câmera ainda foca Randy de costas. Ele para em frente à cortina de tiras de plásticos, respira fundo, como uma espécie de ritual no momento de entrar no ringue. O som dos torcedores pontua a cena. Randy abre as cortinas e, exatamente quando passa pelo umbral, o som da torcida termina. Ele está agora em seu local de trabalho. Vai passar o dia cortando presuntos, servindo maioneses, pesando mussarelas. O momento de glória de Randy terminou, vai ficar na memória, como canções entoadas por fãs martelando em seu cérebro.

O lobisomen

A Londres do cinema é enigmática, sombria, beira o realismo fantástico. As ruas mal iluminadas pelas precárias lamparinas a gás. A neblina saindo do chão, envolvendo personagens cobertos por sobretudos e chapéus escuros que escondem as faces e as intenções de assassinos e psicopatas. Pontes soturnas sobre o Rio Tâmisa, inspirando um ou outro suicida. Bares em obscuros porões onde o submundo espera a noite para se mostrar aos habitantes. Cientistas desfigurados atrás de frascos de experimentos ou cadáveres insepultos. Prédios medievais cujas janelas podem ser estilhaçadas por criaturas da noite no momento em que uma nuvem atravessa a lua ou um raio de tempestade irrompe. Vielas sujas por onde transitam miseráveis,  bandidos, crianças perdidas, jovens ingênuas e prostitutas prestes a se deparar com estripadores.

O lobisomem não é personagem característico das ruas londrinas, está associado aos campos tenebrosos da Inglaterra, formado por árvores seculares que suscitam as mais diversas fantasmagorias na imaginação do espectador, bem como aos pântanos sorrateiros e assassinos. O uivo lancinante do lobisomem com a lua cheia tomando conta da tela parece ecoar por toda a Inglaterra e pelo imaginário dos amantes do cinema.

Tudo isto está no lobisomem interpretado por Benicio Del Toro. É desses clichês a que nos acostumamos e, quando bem revisitados, enchem a alma do espectador de premonições, de sonhos incompreensíveis. Após a sessão, é comum acordar sobressaltado do sono, mesmo que você já seja conhecedor destas cenas, dessa essência do gênero terror.

A sequência mais impressionante do filme acontece em Londres, quando a criatura é perseguida pelos prédios e ruas da cidade. Ela salta pelos prédios com a agilidade inconstante de sua natureza, misto de humano, lobo e monstro. O instinto faz o lobisomem dilacerar rostos e vísceras pelo caminho. Rompe o cerco pelas ruas com fúria monstruosa.

O filme é digno representante deste cinema sobrenatural que se torna a cada refilmagem mais realista e impressionante nas cenas de transformação e de ataques da criatura. Cinema remodelado através das infinitas possibilidades digitais, com cenas impressionantes, mas consciente do verdadeiro terror que está na gênese do lobisomem: o que não se mostra, o que não se vê, é que deixa nitidamente a imagem no espectador.

O lobisomem (The wolfman, EUA, 2010), de Joe Johnston.

O iluminado

– Johnny está aqui.

Este grito de Jack Torrance (Jack Nicholson) com o rosto no buraco da porta é das cenas ícones do cinema. Traduz o enlouquecimento completo do pacato e amável pai de família, acometido pela síndrome do isolamento, tema central do filme O iluminado (The shining, EUA, 1980), de Stanley Kubrick.

Jack Torrance, escritor frustrado, é contratado como zelador de um hotel nas montanhas do Colorado durante o inverno. Ele, a mulher (Shelley Duvall) e o filho (Danny Lloyd) vão ficar durante seis meses sozinhos, isolados pela neve. Aos poucos, os membros da família sofrem de alucinações e Jack começa a enlouquecer, assombrado por estranhos personagens do passado do hotel.

O filme é das mais perfeitas combinações de técnicas cinematográficas – som, fotografia, montagem – com interpretação de atores para evidenciar no espectador o sentimento perturbador que nos acompanha por toda a vida: o medo.

As sequências do menino Danny andando de velotrol pelos corredores do hotel são exemplares no uso do travelling e do som. O barulho das rodas, estridente quando passa pelo piso e macio quando em cima dos tapetes, se assemelha à respiração tensa e descompassada, às vezes calma, logo em seguida ansiosa diante da expectativa do que o menino vai encontrar após a próxima curva.

A câmera baixa acompanha o andar do brinquedo, filmando o garoto por trás. À frente, as dependências do hotel e os longos corredores ganham sentido gigantesco, assustador. Aos olhos do menino, que vê tudo do chão, as coisas ganham essa dimensão ao mesmo tempo fascinante e incompreensível, como se apesar do medo tudo tivesse que ser explorado.

Desde o início do filme, Danny vê imagens de duas meninas de mãos dadas, paradas à frente. Inserts que duram segundos na tela, como fragmentos de imagens de sonhos. Ao abrir dos olhos, nos deparamos com a imagem estampada na parede, na porta do quarto, no corredor da casa. Este medo real, possível, torna diversas sequências do filme grandes momentos do suspense no cinema.

As inserções aguçam a sensibilidade do espectador. As irmãs de mãos dadas. A câmera parada na porta do hotel. O líquido vermelho entrando repentinamente pelas laterais – o vermelho e o branco da neve compõem grande parte da estética do filme, simbologia assustadora e ao mesmo tempo bela. Os olhos de Jack Nicholson. Tudo prepara o espectador para as sequências finais do enlouquecimento do personagem – não é preciso falar da interpretação de Jack Nicholson, basta uma imagem e você sabe que está diante das mais impressionantes transformações de ator.

A sequência de abertura de O iluminado faz parte de minhas lembranças de um filme no cinema. O lento travelling da câmera aérea, acompanhando o carro pela estrada sinuosa, emoldurada por lagos, florestas, descampados, montanhas nevadas, túnel, até terminar no grande plano do hotel que se confunde com a própria paisagem.  A música define que estamos diante de um filme tenso. Tenso e belo.

Essa lentidão domina grande parte do filme.  Duas características que o cinema moderno perdeu: belas aberturas enquanto os créditos passam pela tela e a proposital lentidão em filmes de suspense para preparar o espectador, criar tensão e ansiedade aos poucos. Hoje, a maioria das obras de suspense e terror começam abruptamente, já com cenas impactantes.

Stanley Kubrick (1928-1999) trabalhou no início da carreira como fotógrafo da revista Look. Isso ajuda a entender o cuidado estético que tinha com cada cena. Perfeccionista, beirando a obsessão, seus filmes demoravam em média cinco anos entre a concepção e finalização. Ele dirigiu apenas 13 longa-metragens, entre eles o maior clássico da ficção científica: 2001 – uma odisséia no espaço (1968).

O iluminado é adaptado do livro homônimo de Stephen King, um dos grandes marcos da literatura sobrenatural. Kubrick usou a ideia central do livro e recriou a história com concepções cinematográficas. Stephen King não gostou da adaptação e produziu anos depois um novo filme, seguindo passo a passo o enredo do livro.

A obra de Kubrick está além de todas essas discussões sobre quem é o maior responsável pelo sucesso do filme. A interpretação de Jack Nicholson? A história de Stephen King? A direção de Stanley Kubrick? Ou o espectador, sentado na cadeira do cinema diante do medo puro e simples das imprevisíveis oscilações da mente humana?