Faya Dayi

“Era uma vez, havia um velho emir chamado Azurkherlaini. Ele era um homem devoto. Um dia, ele foi tomado pelo medo. Ele começou a rezar: “Senhor, por que o medo agora? Sei que estou pronto para morrer.” Naquela noite, Deus falou com ele em um sonho. ‘Deve encontrar Maoul Hayat.’ ‘Maoul Hayat’, Ele disse, é a água da vida eterna.”

Esse trecho do documentário de Jessica Beshir expõe o misticismo associado ao khat, uma folha estimulante, cultivada e comercializada pelos etíopes. As imagens poéticas transitam pelas inebriantes paisagens rurais do país, centros urbanos, feiras, onde os coletores e comerciantes se esmeram no trato com a planta. Os jovens dominam grande parte da narrativa, expondo seus sonhos e desejos de prosperidade, alguns de deixar o país, enquanto se entregam à inebriante atmosfera provocada pelas promessas das folhas nascidas da terra e das lendas.  

Faya Dayi (Etiópia, 2021), de Jessica Beshir.

El planeta

O filme abre com uma divertida sequência: a jovem Leonor está em um restaurante com um homem, marcaram encontro por aplicativo, ela está em sua primeira experiência como pretensa garota de programa. Desiste e volta para sua rotina ao lado da mãe, que vive de aplicar fraudes e furtos em supermercados e lojas de grife.

A narrativa reflete a crise econômica contemporânea, afetando os desejos consumistas da classe média.  Mãe e filha tentam ao mesmo tempo manter condições mínimas de subsistência: comer, pagar o aluguel, a conta de luz, sem abrir mão de seus gostos refinados: jantar em restaurantes caros, vestir casacos de pele, preservar a vida de aparências. A narrativa tem um tom bem-humorado e ácido, abordando questões sem solução no mundo capitalista consumista. 

El planeta (Espanha, 2021), de Amalia Ulman. Amalia Ulman (Leonor), Ale Ulman (Maria). 

Coração de cristal

O diretor Werner Herzog afirmou que hipnotizou os atores durante as filmagens, pois queria deles uma atuação sem vida, como se estivessem conformados, sem esperança, caminhando letárgicos para o fim que se anuncia durante todo o filme. Verdade ou não, Coração de cristal transparece essa sensação de finitude, reforçada pelo ritmo lento e contemplativo da narrativa. 

A história se passa em uma aldeia da Bavária, século XVIII. Os moradores vivem às custas da fabricação do vidro-rubi, no entanto, o mestre vidraceiro morre e leva junto o segredo dessa quase alquimia. O dono da fábrica sacrifica tudo em busca de descobrir o segredo e, passo a passo, a degradação toma conta de todos.

Hias, protagonista e espécie de profeta, contempla tudo do alto de uma montanha. A estética da película apresenta cenas deslumbrantes: o clima gelado da Bavária, a imensidão à frente de Hias em sua montanha, o processo de fabricação do vidro, essa arte milenar. Dizem que Herzog queria hipnotizar também o espectador durante as sessões. Desistiu da ideia e, creio, não seria preciso: a beleza etérea da película cuida disso.  

Coração de cristal (Herz aus glas, Alemanha, 1976), de Werner Herzog. Com Josef Bierbichler (Hias), Stefan Güttler (Hüttenbesitzer), Clemens Scheitz (Adalbert). 

Calafrios

O filme abre com um comercial de TV apresentando as maravilhas do Condomínio Starline, divulgado como uma ilha paradisíaca, prédio residencial de apartamentos com toda a infra-estrutura para que os moradores nem pensem em sair dali para nada, inclusive com modernas instalações de saúde. Corta para um casal conversando com o corretor, fascinados pelo empreendimento, dispostos a adquirir um apartamento já mobiliado. 

Mas é um filme de David Cronenberg: a próxima sequência leva o espectador para dentro de um apartamento, onde um homem mais velho persegue uma jovem, a deita em uma mesa e, depois de matá-la, abre sua barriga em busca de suas vísceras. Pouco depois, o homem corta o próprio pescoço. 

O tema do filme é um vírus criado em laboratório por um médico, o assassino, e implantado no corpo de uma garota de programa, a vítima. Como a garota atendia a homens e mulheres do condomínio, o vírus se espalha e a narrativa apresenta uma sucessão de cenas escabrosas, misto de violência e sexo. O Dr. Roger St Luc passa a investigar os acontecimentos, motivado pelos relatos de pacientes, e se confronta com a inevitável proliferação da doença que provoca desejos sexuais incontroláveis. David Cronenberg, claro, não poupa o espectador e muito menos a humanidade que se vê diante de seus desejos carnais mais perversos. Atenção para a sequência do elevador, as portas se fecham, quando se abrem, uma garotinha já contaminada se debruça, junto com a mãe, sobre o homem que as infectou.

Calafrios (Canadá, 1975), de David Cronenberg. Com Paul Hampton, Joe Silver, Lynn Lowry, Allan Kolman, Susan Petrie, Barbara Steele, Ronald Mlodzik, Barry Baldaro, Camil Ducharme, Hanka Poznanska, Wally Martin, Vlasta Vrana.

A casa lobo

Sombras e pinturas que se formam nas paredes de uma casa. Porquinhos que viram crianças. Uma jovem que transita pelos meandros da escuridão, ouvindo a voz do lobo do lado de fora. Ecos de um passado aterrorizante, referências ao horror nazista e ao terror do regime de Pinochet. 

A casa lobo, dos chilenos Cristóbal León e Joaquín Cociña, é essa adorável e assustadora animação, misturando técnicas de stop motion e jatos nas paredes. É a história de Maria, uma jovem que foge de uma colônia alemã e se refugia em uma casa abandonada. Seus companheiros são dois porquinhos e a ameaçadora voz do lobo. A releitura dos contos de fada ganha uma estética gótica, trazendo à vida os espectros mais sombrios de nossa imaginação. 

A casa lobo (La casa lobo, Chile, 2018), de Cristóbal León e Joaquín Cociña.

Caçador de morte

Caçador de morte é um dos influentes filmes de perseguição de carros que marcou o cinema dos anos 60/70, assim como Bullitt (1968) e Operação França (1971). Ryan O’Neal interpreta um exímio motorista, que aluga caro seu talento para assaltantes de bancos. Durante um assalto mal-sucedido, ele é visto pela personagem de Isabelle Adjani. O detetive (Bruce Dern) tenta convencê-la a depor e acusar o Driver, mas ela se recusa. 

O filme foi um fracasso de público e crítica nos anos 70, mas acabou se transformando em cult, influenciando filmes modernos como Drive (2011) e em Ritmo de fuga (2017). A narrativa é marcada por um relacionamento intenso entre o casal de protagonistas e o tradicional jogo de gato e rato entre detetive e bandido. Claro, o destaque fica para as estonteantes perseguições de carro nas ruas da cidade. 

Caçador de morte (The driver, EUA, 1978), de Walter Hill. Com Ryan O”Neal, Bruce Dern e Isabelle Adjani. 

Between two dawns

Between two dawns, primeiro filme de Selman Nacar, parte de um acidente rotineiro e trágico: um trabalhador é gravemente ferido ao tentar consertar uma máquina na tecelagem onde trabalha, um negócio administrado pelos irmãos Kadir e Serpil. 

Kadir, o irmão mais jovem, assume a tarefa de dar assistência ao ferido no hospital. Quando conhece a esposa do trabalhador, começa um forte dilema moral, o conflito entre os interesses da família e seus valores pessoais. A narrativa acontece em apenas dois dias, filmada nos ambientes urbanos, centrada na jornada de Kadir e em sua inerente transformação. A realista e cotidiana jornada do herói que pode acontecer com cada um de nós, basta um incidente ao sairmos de casa. 

Between two dawns (Iki Safak Arasinda, Turquia, 2021), de Selman Nacar. Com Mucahit Kocak (Kadir), Nezaket Erden (Serpil), Unal Silver (İbrahim), Bedir Bedir (Halil), Burcu Gölgedar (Esma), Erdem Şenocak (Yasin).

Anjos rebeldes

As adolescente Mary e Rachel se conhecem em um trem repleto de jovens a caminho de um colégio interno administrado por freiras. A amizade começa e segue no colégio marcada por atos rebeldes, principalmente contra a Madre Superiora, pois enxergam nela a mentora das rígidas convenções que cercam as internas. 

A comédia de Ida Lupino traz um tema caro ao cinema: o rito de passagem da adolescência para a vida adulta. A bela amizade entre Mary e Rachel vai se confrontar com as escolhas inerentes ao amadurecimento, ao descobrimento de sentimentos ocultos, que se afloram em gestos simples, como se doar ao outro. Rosalind Russell cativa e comove como a rígida Madre Superiora que enternece a todos à medida que revela sua face doce e amorosa.

Anjos rebeldes (The trouble with angels, EUA, 1966), de Ida Lupino. Com Rosalind Russell (Madre Superiora), Hayley Mills (Mary) , June Harding (Rachel).