The ring

The ring (Inglaterra, 1927), de Alfred Hitchcock. 

Alfred Hitchcock considerava o ringue seu segundo filme “hitchcockiano”, depois de O inquilino (1927). O diretor se refere ao seu estilo marcado por soluções visuais e inovações técnicas. 

“Havia ali todo tipo de inovações e me lembro de que uma cena de montagem bastante elaborada foi aplaudida na estreia do filme. Era a primeira vez que isso me acontecia. Havia as coisas mais variadas que hoje ninguém mais faria; por exemplo, uma festinha, numa noite, depois de uma luta de boxe. Serve-se champanhe nas taças e vê-se muito bem o champanhe borbulhando, e todas as bolhas… Faz-se um brinde à heroína e se percebe que ela não está lá: desapareceu com outro homem. Então o champanhe pára de borbulhar.”

A narrativa, marcada por um triângulo amoroso, apresenta outra marca do diretor: as ousadas insinuações eróticas e sexuais. Betty (Lillian Hall-Davis) está de casamento marcado com o boxeador de um parque de diversões, One Round Jack (Carl Bresson). Bob Corby (Ian Hunter), campeão australiano de pesos pesados, convida Jack para ser seu sparrow durante os treinos e também se apaixona pela jovem. 

Depois do casamento, à medida que Jack progride na carreira de lutador, se vê em conflito, pois claramente sua esposa mantém um caso extra-conjugal com Bob. A ousadia da jovem protagonista, em forte dimensão feminista, é representada por sugestões visuais: ela não tira o bracelete que ganhou de Bob do braço, nem mesmo perto do marido, e, em cima de seu piano, na sala de estar, há uma foto do campeão australiano. 

“Era uma boa ideia, e havia muitas outras, achados visuais e simbólicos. Todo o filme era uma história de adultério, com uma profusão de alusões ao pecado original. Não esqueci os múltiplos usos do bracelete que representava uma serpente.” – François Truffaut

Referência: Hitchcock Truffaut. Entrevistas. Edição definitiva. François Truffaut e Helen Scott. São Paulo: Companhia das Letras, 2004

A colheita

A colheita (Harvest, Inglaterra, 2024), da diretora Athina Rachel Tsangari, é baseado no romance de Jim Crace. A história se passa em um período indefinido da idade média, na Inglaterra, em uma pequena área agrícola onde os camponeses vivem dos frutos da terra.  Walter Thirsk (Caleb Landry), narrador da história, presencia e reflete sobre o fim de um tempo, quando as atividades agrícolas deram lugar à privatização das terras e exploração pelos futuros latifundiários. 

A narrativa se passa praticamente em sete dias, contados a partir do momento que dois invasores são presos no pelourinho e devem cumprir a pena de uma semana. Nesse período, a colônia é tomada por incendiários, um mapeador que delimita as terras para fins políticos e econômicos, líderes da cidade que chegam para exercer seu direito à propriedade, rituais pagãos de colheita, denúncias de bruxaria, mortes e devastação. 

A direção de fotografia de Sean Price Williams destaca, na primeira parte, a beleza harmônica do convívio com a natureza dos camponeses. À medida que o horror se anuncia, o amarelo agressivo do fogo, o tom do cobre e as sombras da noite tomam conta da estética, anunciando o final lúgubre imposto pelo cruel capitalismo.    

Elenco: Caleb Landry Jones, Harry Melling, Rosy McEwen, Arinzé Kene, Thalissa Teixeira, Frank Dillane.

Conheço bem essa moça

Conheço bem essa moça (Io la conoscevo bene, Itália, 1965), de Antonio Pietrangeli.

Adriana (Stefania Sandrelli), uma jovem interiorana da província de Pistoia, passa os dias de bem com a vida, se divertindo de forma irreverente com os amigos e se entregando, sem restrições morais ou sociais, a seus namorados. Até mesmo quando é abandonada por um deles no hotel e se vê sem dinheiro para pagar a conta, Adriana encara a situação com indiferença e bom humor. Assim como tantas jovens fascinadas pelo cinema, ela se muda para Roma e tenta a carreira de atriz. 

Conheço bem essa moça é o último filme de Antonio Pietrangeli, que faleceu em 1968, aos 49 anos. O diretor trata com sensibilidade um tema recorrente na vida das jovens que se aventuram no mundo do cinema: a exploração física e psicológica a que são submetidas pelos homens desse mercado, incluindo produtores, atores e diretores. 

Adriana, em interpretação soberba de Stefania Sandrelli, encara tudo isso com uma ingênua e alegre desfaçatez, mesmo sabendo que não passa de um instrumento sexual, prática comum e repulsiva nas áreas de cinema, moda e publicidade da época. Seu gesto final, inesperado e violento, reflete as contradições perigosas entre a vida exterior e a interior. 

Os noivos

Os noivos (I fidanzati, Itália, 1963), de Ermanno Olmi.  

A abertura do filme é uma fascinante experiência visual. Um grupo de cidadãos entra em um salão de dança. Os músicos preparam seus instrumentos. Começam a tocar. Lentamente, homens e mulheres começam a dançar aos pares, em movimentos graciosos. Giovanni (Carlo Cabrini) e Liliana (Anna Canzi) estão sentados, olhando em silêncio para os dançantes. Têm as feições entristecidas, principalmente Liliana, que denota um semblante choroso. 

Cortes entre o salão de dança e a fábrica onde Giovanni trabalha anunciam o conflito entre o casal: Giovanni recebe uma proposta vantajosa para passar um ano e meio na Sicília, trabalhando na implantação da nova fábrica da empresa. 

O diretor Ermanno Olmi, aclamado por A árvore dos tamancos (1978) é um poeta das imagens. Os noivos transcorre de forma lenta, com imagens simbólicas de Giovanni na nova cidade, sozinho nas pensões onde mora, frequentando bares, na praia onde se entrega a um novo relacionamento, nas festas carnavalescas de rua. A música tema do início do filme pontua sua solidão, como a lembrar sempre da noiva em Milão. 

O estilo documental da câmera revela as referências do diretor: “Em uma conversa com Pasolini, estávamos discutindo o valor de um cinema que, como posso dizer, é tão próximo da realidade a ponto de se tornar nossa visão da realidade. Em outras palavras, reconhecemos o mundo em que vivemos através do cinema. O primeiro surto de inspiração com qualquer profundidade de valor cinematográfico foi com Rossellini. Os filmes de Rossellini me fascinavam porque você podia ver no cinema aquilo que você via nas ruas, na vida real. Naquela hora, eu não totalmente consciente, tive a intuição de que o cinema poderia ser uma forma de enxergar a realidade, não com a intenção de escapar da realidade, mas como sugestão de uma chave para entendê-la.”

A história de Giovanni e Liliana é pautada pela realidade da Itália que adentra a modernidade. As indústrias do norte invadem o sul agrícola, provocando uma ruptura cultural, nas tradições, nos valores morais, da Sicília conservadora. O princípio da modernidade também é a marca do novo cinema dos anos 60. Ermano Olmi comenta sua opção por uma estrutura inovadora.

“Quando fiz O emprega (1961) lembro que havia uma garota na edição. Eu ainda não me sentia preparado para a responsabilidade de editar um filme e eu disse para ela: ‘quando contamos a história dos trabalhadores em casa vamos apenas manter alguns planos deles em suas casas’. Ela contrapôs: ‘O espectador não entenderia.’ Então eu tinha que aceitar um mínimo de compromisso que me deixava insatisfeito. Com Os noivos, antes mesmo de começar a filmar, decidi utilizar o presente e um possível futuro. Quando os noivos trocam cartas de amor no final, isso não é o passado. É como eles se veem, projetado num futuro no qual eles se apaixonam novamente e dançam mais uma vez como noivos. Naquele ponto eu percebi que não podia mais me submeter a um estilo de edição convencional. Eu deveria intervir pessoalmente. Em Os noivos, por ter uma terceira dimensão temporal, que não é o presente, mas uma dilatação do presente no passado e no futuro, a música é uma ressonância interior. O tema musical da dança fica tocando na cabeça dele. Para nós, as memórias costumam vir acompanhadas de música.”

A s cenas de leitura das cartas, entrecortadas por imagens solitárias de Liliana e Giovanni, são muito mais do que sugestões de um passado ou um possível futuro: são palavras, frases, imagens e música que irrompem, deixando o espectador entregue a esse cinema poético.

O mafioso

O mafioso (Mafioso, Itália, 1962), de Alberto Lattuada.

Nino Badalamenti (Alberto Sordi), um funcionário exemplar de uma fábrica em Milão, é casado com Marta Badalamenti (Norma Bengell). O casal tem duas filhas e, durante as férias, todos embarcam para conhecer a adorada terra natal de Nino: a Sicília. O entusiasmo de Nino apresentando para a família as paisagens, o mar, as ruelas da cidade e os campos que percorreu quando criança é contagiante. 

O tom de comédia da primeira parte do filme é determinado pelas relações de Nino com sua família, formada pelos pais, irmã, tios, primos, primas; a autêntica e extravagante família siciliana. A princípio, a sensação de estranheza entre Marta, uma moderna jovem do norte, e a tradicional sociedade do sul, é recíproca. Tudo vai bem, apesar dos pequenos conflitos, até que Don Vincenzo (Ugo Attanasio),  o mafioso do título, entra em cena e transforma o idílio de Nino em um pesadelo. 

O diretor Alberto Lattuada, um dos ícones do neorrealismo italiano, começa o filme como uma tradicional commedia all’italiana e termina como um thriller de gangsters. Quando Nino é incumbido de uma missão misteriosa, o tom sombrio toma conta da narrativa, terminando em uma impensável ação praticada pelo pacato operário. A sequência dentro da barbearia em Nova York é um prenúncio da espetacular ação de Michael Corleone (O poderoso chefão, 1972) no restaurante. 

Hot milk

Hot milk (Inglaterra, 2025), de Rebecca Lenkiewicz.

O primeiro longa-metragem da roteirista e diretora Rebecca Lenkiewicz é um convite à sensualidade. A jovem Sofia (Emma Mackey) acompanha Rosi (Fiona Shaw), sua mãe, em uma temporada em Almería, Espanha. Rosi sofre com uma doença que a impede de caminhar e depende da filha. Elas estão na cidade para um tratamento com o Dr. Gómez (Vincent Perez), espécie de curandeiro místico que tenta descobrir as causas psicossomáticas para a doença de Rosi. 

O tema central do filme, baseado no romance de Deborah Levy , é a dependência, principalmente psicológica, entre mãe e filha: para cuidar da mãe, Sofia desiste de cursar seu doutorado em Antropologia. Tudo muda para Sofia quando ela conhece Ingrid (Vicky Krieps), mulher que se relaciona livremente com homens e mulheres.

Traumas obscuros do passado podem ser determinantes no relacionamento entre as três mulheres. Enquanto Sofia e Ingrid se entregam à paixão no sol da Almería, Rosi afunda cada vez mais em sua entrega psicológica e física. A cena final, determinada por uma instigante elipse de enquadramento, deixa tudo em aberto, como nos meandros da mente.

Este crime chamado justiça

Este crime chamado justiça (In nome del popolo italiano, Itália, 1971), de Dino Risi.

Mariano Bonifaz (Ugo Tognazzi)i acaba de ser promovido a juiz. Seu senso de justiça e humanismo o coloca frente a frente com um poderoso empresário, Lorenzo Santenocito (Vittorio Gassman), suspeito de assassinar uma garota de programa. Durante a investigação, Bonifazi se depara com uma intrincada rede de negócios que envolve corrupção e incentivo à prostituição de jovens que são oferecidas a empresários e políticos. 

O filme de Dino Risi é uma contundente crítica ao sistema judiciário, político e empresarial da Itália dos anos 70. A narrativa se concentra no embate psicológico entre Bonifazi e Santenocito, que protagonizam verdadeiros duelos verbais. Show de atuação de dois grandes atores do cinema italiano de todos os tempos: Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman.

O final perturbador, quando o juiz descobre a verdade sobre a morte da jovem, expõe os limites da ética judiciária. O dilema de Mariano Bonifazi acontece durante incendiários protestos nas ruas de trabalhadores e estudantes, primor de narrativa visual e psicológica. 

A erva do rato

A erva do rato (Brasil, 2008), de Júlio Bressane e Rosa Dias. 

São apenas dois personagens em cena durante todo o filme, enclausurados em uma casa perto do mar. Os dois, seus nomes nunca são revelados, se conhecem em um cemitério e o jovem, num rompante, diz que vai cuidar da jovem durante toda a vida.

Em casa, ele lê histórias que ela nota rapidamente. Mais tarde, começam um jogo erótico de fotografias: ele a fotogrando primeiro vestida, depois nua, em poses sensuais, incluindo foco explicíto em suas partes íntimas. Quando um rato começa a destruir as fotografias, a narrativa ganha ainda mais um tom sombrio, deprimente, com leituras simbólicas e metafóricas.


Júlio Bressane, pai do cinema marginal ao lado de Rogério Sganzerla, adaptou de forma livre dois textos de Machado de Assis: Um esqueleto e A causa secreta. Selton Mello e Alessandra Negrini praticam um verdadeiro tour de force de interpretação minimalista, com diálogos frios, mas repletos de insinuações, gestos que denotam uma distância respeitosa, mas plenos de erotismo. Pode-se dizer o mesmo do rato, que transita entre os dois despertando fúria e entrega ao destino – anunciando a erva do rato.

Negócios à parte

Negócios à parte (Rien ne va plus, França, 1997), de Claude Chabrol.

Claude Chabrol se destacou entre os famosos cineastas da nouvelle vague, e também críticos da Cahiers Du Cinema, pela sua incursão aos filmes de gênero. Negócios à parte é seu filme de número 50, uma carreira longa e produtiva, com a marca do diretor: homenagens a outros realizadores, gêneros que se implicam, abordagens críticas da burguesia francesa, personagens ambíguos. 

A trama acompanha as peripécias do casal de vigaristas Victor (Michel Serrault) e Betty (Isabelle Huppert) – não fica claro durante a narrativa se são amantes, apenas amigos de bandidagem ou pai e filha. Os dois vivem de aplicar pequenos golpes em hóspedes de hotéis de luxo, sempre se precavendo para não provocar qualquer tipo de violência. O turning point acontece quando Betty se envolve com Maurice (François Cluzet), tesoureiro de uma empresa multinacional, que planeja fugir com cinco milhões de francos suíços que estão sob seus cuidados. 

A partir daí, a trama é uma sucessão de estratagemas bem ao estilo policial farsesco: troca de maletas em um trem; Betty tentando enganar a todos para ficar com o dinheiro; Victor idem; entrada em cena de uma dupla de atrapalhados assassinos profissionais; reunião em uma casa luxuosa onde tudo pode acontecer, incluindo assassinatos escabrosos. 

Não é o melhor filme de Claude Chabrol, mas é sempre o Chabrol irônico, divertido, contando com grandes estrelas no elenco: Isabelle Huppert, praticamente dona da narrativa.

Pussy

Pussy (Cipka, Polônia, 2016), de Renata Gasiorowska. 

Uma jovem está em sua casa sozinha, à noite. Ela começa a se acariciar, entra na banheira e continua se entregando ao prazer. Uma reviravolta surreal, à princípio assustadora para a jovem, transforma sua busca em um auto conhecimento dos seus desejos e de seu corpo de forma livre, selvagem, rebelde. 

Os trabalhos de animação da diretora polonesa Renata Gasiorowska, incluindo filmes e clipes, são sempre muito bem recebidos pela crítica em diversos festivais de cinema. Pussy foi premiado no Festival Internacional de Curta-Metragem de Clermont-Ferrand. A narrativa é ousada, com cenas e insinuações provocativas em relação ao prazer feminino. A passagem da personagem do mundo real para o imaginário, o surrealismo, é um convite à plena libertação.