O dia que te conheci

O dia que te conheci (Brasil, 2023).

A narrativa do sensível filme de André Novais Oliveira, da produtora Filmes de Plástico, se passa em pouco mais de 24 horas. Zeca (Renato Novaes) tem dificuldades para acordar devido aos medicamentos contra depressão que faz uso. Chega atrasado mais uma vez no trabalho, ele é bibliotecário de uma escola em Betim. Luísa (Grace Passô) é incumbida de informar ao funcionário que ele está demitido. No fim do dia, Luísa oferece carona a Zeca, pois tem um compromisso em Belo Horizonte. 

A produtora Filmes de Plástico tem notoriedade no cinema independente brasileiro devido às temáticas de seus filmes e ao estilo de filmagens. As locações de O dia que te conheci são as ruas periféricas das cidades. A escola, os bares, os ambientes comerciais, a moradia de Zeca, representam a vida comum das pessoas que lutam no dia a dia pela sobrevivência.

Entre a demissão e uma noite de sexo, o terno encontro entre Zeca e Luisa se desenvolve de forma simples, com direito aos chamados “tempos mortos” (expressão cunhada pelos cineastas clássicos americanos para cortar cenas que não movem a narrativa em termos de conflitos): a longa conversa entre o casal no carro, a caminhada em quase silêncio pelas ruas ao anoitecer, o enquadramento final da padaria em uma esquina do bairro. Lindos, esses “tempos mortos”.

Pedágio

Pedágio (Brasil, 2023), de Carolina Markowicz.

Suellen trabalha como cobradora de pedágio nas imediações de Cubatão. Ela vive com seu namorado Eraldo e o filho adolescente Tiquinho, que passa os dias entre os estudos e gravando vídeos para a internet se insinuando como transformista. Suellen descobre que Eraldo está envolvido com atividades criminosas e o expulsa de casa. 

A diretora Carolina Markowicz e a atriz Maeve Jinkings repetem a parceria do primeiro longa da diretora, Carvão (2022). O tema do filme é a relação conflituosa entre Suellen e seu filho, com decisões que abrem a reflexão sobre o fanatismo religioso e o preconceito. Suellen recorre a um Pastor que ganhou renome no procedimento de “cura-gay”, tentando matricular Tiquinho no curso. Como o “tratamento” é caro, Suellen se alia a Eraldo, fornecendo informações sobre os viajantes que passam pelo pedágio com potencial para serem assaltados na estrada. 

Pedágio participou de importantes circuitos internacionais, entre eles o Festival Internacional de Cinema de Toronto e o Festival de San Sebastian. O filme foi um dos pré-selecionados para representar o Brasil no Oscar 2024 e recebeu diversos prêmios no Brasil, consolidando o nome de Carolina Markowicz como uma das mais promissoras diretora do cinema nacional contemporâneo. 

Elenco: Maeve Jinkings (Suellen), Kauan Alvarenga (Tiquinho), Aline Marta Maia (Telma), Thomás Aquino (Arauto), Isac Graça (Pastor Isac).

Home

Home (Coreia do Sul, 2023), de Jeong Jae-hee. Com Yang Mal-bok.

Uma jovem abre a porta do quarto e vê sua mãe estendida no chão. Ela faz compressões no coração da vítima mas é tarde. A mãe morrera por falta do remédio, pois sozinha não conseguia tomá-lo. 

Em um processo de luto, a jovem separa pertences e cartas da mãe e começa a ter visões repentinas e sutis da mãe. A imagem do corpo caído no quarto volta outras vezes, em uma montagem que sugere fatos não revelados sobre a morte, talvez a pressão psicológica da morte desejada. 

A fotografia noir domina a narrativa. Planos, ângulos, cortes, elipses, o curta se apropria sem pudor dos elementos do gênero terror para sugerir traumas passados. A montagem invertida sugere ao espectador fragmentos de memória ou de sonhos assustadores. Difícil lidar com a culpa quando se está só em casa à noite, pensando no que assombra o quarto ao lado.

La chimera

La chimera (Itália, 2023), de Alice Rohrwacher.

Toscana, anos 1980. Arthur (Josh O”Connor), um arqueólogo inglês, volta para reencontrar seus amigos, após um período na prisão. A princípio ele recusa o grupo, mas retorna à sua atividade: descobrir e saquear túmulos etruscos, vendendo os objetos a contrabandistas. 

La chimera faz parte da trilogia de Alice Rohrwacher sobre a relação do ser humano com a terra, com a cultura da Itália rural, com as tradições seculares. Os outros são As maravilhas (2014) e Lazzaro Felice (2018). 

Arthur vive ligado ao passado, fascinado pelos objetos que descobre e preso a seu amor perdido, a jovem Beniamina, recém falecida. Seu dom de descobrir túmulos antigos é também uma espécie de relação entre a vida e a morte que vai selar o seu destino.

A interpretação de Josh O’Connor, compondo um personagem sujo, triste e amargurado, é um dos destaques da película. Vale ainda a participação de Isabella Rossellini, como Fiora, a matrona italiana, que administra uma mansão em ruínas. 

O realismo socialista

El realismo socialista (Chile, 2023), de Raúl Ruiz e Valeria Sarmiento.

Entre 1972 e 1973, o cineasta chileno Raúl Ruiz trabalhava nas filmagens de O realismo socialista, mas foi forçado a abandonar o projeto após o golpe militar que derrubou o governo socialista no país. Cinquenta anos depois, Valeria Sarmiento, esposa de Raúl, lançou a obra, após um processo de restauração que durou cerca de sete anos. 

A narrativa acompanha a luta ideológica e partidária de dois grupos ligados à esquerda: trabalhadores que querem ocupar e retomar a produção de uma fábrica e intelectuais que tentam controlar o movimento, buscando apoio para um amplo projeto de socialização no Chile. A discórdia evolui para embates físicos, em determinado momento o que parece ser um documentário se transforma em um filme com ações de violência e de tiroteio. 

O realismo socialista em seu estilo doc/fic é um poderoso registro histórico de um dos momentos mais conturbados e violentos da história recente da América Latina, dominada por crueis regimes militares. 

Elenco: Jaime Vadeli, Juan Carlos Moraga, Javier Maldonado, Marcial Edwards, Nemesio Antúnez. 

Trailer of the film that will never exist: ‘phony wars’

Trailer of the film that will never exist: ‘phony wars’ (França, 2023), de Jean-Luc Godard, começa com uma colagem de pinturas, frases poéticas desenhadas à mão, imagens de cinema, intituladas trailer de filmes de drones. Tudo fica em tela por intermináveis segundos, amparado pelo silêncio. O primeiro som é a narração em off da teórica de cinema Nicole Brenez: “É como uma imagem que vem de longe. São duas lado a lado. Ao lado dela, sou eu. Nunca a vi antes. Eu me reconheço. Mas não me lembro de nada. Deve estar acontecendo longe daqui. Ou mais tarde.” A abertura demarca o cinema experimentalista de Jean-Luc Godard, que nunca deixou de lado o curta-metragem como exercício de filmes abstratos, não estruturais, imagens e sons tomando conta da mente do espectador. 

A premissa do filme/trailer é uma adaptação do romance Faux passports, de Charles Plisnier, publicado em 1937: “Eis um cenário (na verdade, uma simples adaptação cinematográfica de um velho romance) que diverge de nomes como Carné ou Palma, ao rejeitar as bilhões de imposições alfabética para libertar as incessantes metamorfoses e metáforas de uma linguagem necessária e verdadeira; retomando aos locais de filmagens passadas, mas levando em contas os tempos modernos. 

Trailer of the film… foi lançado após a morte de Godard. O próprio diretor narra o seu processo de construção desse filme/colagem que se transmuta em cinema, artes plásticas, poesia, música, literatura, fotografia, filosofia, política e tudo mais que pautou a vida e o cinema de Jean-Luc Godard, o cineasta mais influente do cinema contemporâneo.

A besta

A besta (La bête, França, 2023), de Bertrand Bonello, é adaptação do conto A fera na selva, de Henry James, publicado em 1903. Em um futuro distópico as pessoas passam por um procedimento que as livram de suas emoções. Gabrielle (Léa Seydoux) faz entrevistas para se submeter ao procedimento. Narrativa paralela apresenta Gabrielle, musicista famosa, em uma festa aristocrática, onde se reencontra com um amigo, Louis (George MacKay). Uma terceira narrativa coloca Gabrielle cuidando de uma mansão enquanto o dono está viajando. Louis agora é um videomaker que grava a si mesmo, revelando suas frustrações por, aos 30 anos, ainda ser virgem e nunca ter beijado uma mulher. 

Saltos temporais alternam as narrativas que podem ser vistas como as três vidas de Gabrielle, sempre marcadas pelos encontros com Louis e por uma ameaça: Gabrielle vive aterrorizada por uma besta, pois pensa que algo trágico acontecerá com ela. O diretor Bertrand Bonello busca influências em cineastas contemporâneos como Michel Gondry (Brilho eterno de uma mente sem lembranças) e David Lynch (Cidade dos sonhos) para seu filme, cuja estrutura se apoia em fragmentos de memórias. No futuro, um fato que não se desenvolve na narrativa, é citado: mais de 60% das pessoas estão desempregadas, pois a inteligência artificial dominou o mercado de trabalho. Isso sim é assustador. 

Depois do amanhecer

Depois do amanhecer (Après l’aurore, França, 2023), de Yohann Kouam. Com Mexianu Medenou, Chloé Lecerf, Rayan Bourouina. 

A narrativa acompanha um dia na vida de três personagens que moram em um conjunto habitacional na periferia da cidade. Yves, um artista, acaba de chegar de Berlim, onde morou por alguns anos. Ele tenta se reconectar com a família e antigos amigos do bairro onde cresceu. Hamza, um adolescente surdo, faz parte de um grupo de marginais e se defronta com desafios que podem levá-lo à criminalidade. Déborah, uma treinadora de basquete, vive solitária até que conhece uma jovem com quem começa um relacionamento. 

O filme é marcado por uma fotografia que destaca a noite e, simbolicamente, deixa a luz do início da manhã tomar conta desta periferia e seus personagens que transitam sem rumo, sem propósito definido, a não ser viver a cada dia depois do amanhecer.

Four unloved women, adrift on a purposeless sea, experience the ecstasy of dissection

Four unloved women, adrift on a purposeless sea, experience the ecstasy of dissection (Candá, 2023), de David Cronenberg. 

O curta tem pouco mais de quatro minutos intensos e provocativos. A câmera caminha rende a água do mar, vislumbrando corpos femininos deitados ao sol. Sobe pelas pernas bronzeadas até revelar figuras de cera com as barrigas abertas, órgãos expostos, vísceras se confundindo com a beleza das mulheres de David Cronenberg. 

A trilha sonora envolvente acirra ainda mais a sensação mista de erotismo e horror. O diretor canandense faz uma espécie de releitura de seu próprio filme, Crimes do futuro (2023), buscando inspiração nas esculturas renascentistas do século XVIII. A narrativa visual deixa reflexões sobre a exposição de corpos no mundo contemporâneo. Reflexões perigosas. 

Verão 2000

Verão 2000 (Été 2000, Canadá, 2023), de Virginie Nolin e Laurence Olivier. 

Durante um final de semana no verão de 2000, a adolescente Raphaella tem que cuidar da filha do namorado de sua mãe, Sarah, de 9 anos. Raphaella pratica skate com um grupo de amigos, incluindo Sam, com quem mantém um relacionamento amoroso. Poderia ser um final de semana de verão como tantos adolescentes anseiam, longe dos pais, com o tempo só para eles. Mas as coisas se complicam quando uma suspeita recai sobre o irmão mais novo de Sam. 

O ponto de vista da narrativa é o de Sarah, que passa o tempo com uma câmera de vídeo. O olhar doce e infantil de Sarah passa por uma descoberta. A dupla de diretores trata deste momento difícil que envolve questões de relacionamento e consentimento com sensibilidade, sem deixar de alertar para as consequências. 

Elenco: Jeana Arseneau, Millie-Jeanne Drouin, William St-Louis, Dylan Walsh.