Este crime chamado justiça

Este crime chamado justiça (In nome del popolo italiano, Itália, 1971), de Dino Risi.

Mariano Bonifaz (Ugo Tognazzi)i acaba de ser promovido a juiz. Seu senso de justiça e humanismo o coloca frente a frente com um poderoso empresário, Lorenzo Santenocito (Vittorio Gassman), suspeito de assassinar uma garota de programa. Durante a investigação, Bonifazi se depara com uma intrincada rede de negócios que envolve corrupção e incentivo à prostituição de jovens que são oferecidas a empresários e políticos. 

O filme de Dino Risi é uma contundente crítica ao sistema judiciário, político e empresarial da Itália dos anos 70. A narrativa se concentra no embate psicológico entre Bonifazi e Santenocito, que protagonizam verdadeiros duelos verbais. Show de atuação de dois grandes atores do cinema italiano de todos os tempos: Ugo Tognazzi e Vittorio Gassman.

O final perturbador, quando o juiz descobre a verdade sobre a morte da jovem, expõe os limites da ética judiciária. O dilema de Mariano Bonifazi acontece durante incendiários protestos nas ruas de trabalhadores e estudantes, primor de narrativa visual e psicológica. 

O sol de Yuki

O sol de Yuki (Japão, 1972), de Hayao Miyazaki. 

No início dos anos 70, Hayao Miyazaki trabalhou em uma série de projetos de animação para a televisão, conciliando os projetos com suas intensas publicações de mangás. O curta-metragem O sol de Yuki foi realizado como um episódio piloto para um desses projetos, no entanto, a série não foi produzida. O curta ficou praticamente esquecido durante décadas, mas no início do século XXI foi resgatado e apontado como um precursor temático e estilístico da carreira de Miyazaki no Studio Ghibli.

A recém-nascida Yuki é abandonada na porta de um orfanato, em Hokkaido. Cresce com um espírito rebelde, livre, se divertindo em meio a natureza, até que é adotada por uma família rica. A partir daí, sua vida se torna uma aventura em busca de seus pais biológicos. 

Com apenas cinco minutos de duração, a marca do mestre japonês se mostra: “Os trabalhos de Miyazaki são caracterizados pela recorrência de diversos temas, como a relação da humanidade com a natureza e a tecnologia, a preservação de padrões de vida naturais e tradicionais, a importância da arte e da perícia, e a dificuldade de manter uma ética pacifista em um mundo violento. Suas protagonistas são frequentemente meninas ou jovens mulheres fortes, com muitos de seus trabalhos apresentando antagonistas ambíguos, que possuem qualidades redentoras.” – Studio Ghibli Brasil.

A última ceia

A última ceia (La ultima cena, Cuba, 1976), de Tomás Gutiérrez Alea. 

Semana Santa, final do século XVIII.  O Conde (Nelson Villagra) visita seu engenho de açúcar e toma uma decisão inusitada: encenar a última ceia, colocando como os apóstolos, doze escravos da propriedade. O ritual começa com o Conde lavando e beijando os pés dos escravos e, a seguir, todos sentam-se à mesa para um fausto banquete. 

Grande parte da narrativa se passa durante a ceia, marcada por longos discursos do Conde, histórias contadas pelos escravos e diálogos quase surrealistas. O fervor religioso do Conde revela sua face cruel e manipuladora: ele usa a religião para justificar a escravidão, o domínio racial dos brancos sobre os negros como uma escolha divina.

O mestre cubano Tomás Gutiérrez Alea expõe de forma cômica e trágica a desumana prática da escravidão, da tortura, mantida e incentivada pelas instituições dos países durante o colonialismo, incluindo a igreja. O terceiro ato, após a rebelião dos escravos, transforma a narrativa quase em um filme de terror, pois o Conde ordena: “quero a cabeça dos doze escravos que se sentaram à minha mesa.”   

Elenco: Nelson Vilagra, Silvano Rey, Luís Alberto Garcia, José Antonio Rodríguez, Samuel Claxton, Mario Balmaseda, Idelfonso Tamayo, Julio Hernandez, Tito Junco, Andrés Cortina, Mirta Ibarra, Manuel Puig.     

Faca na cabeça

Faca na cabeça (Messer im kopf, Alemanha, 1978), de Reinhard Hauff. 

O médico geneticista Hoffmann (Bruno Ganz) está em seu laboratório sob uma luz difusa, bem ao estilo cinema noir. Ele disca um número no telefone, não é atendido, desliga. Ele olha para a janela, ouvimos sua voz interior: “Um americano no meu lugar sairia atirando da janela.”

Hoffman sai do prédio, caminha e depois corre pelas ruas de Berlim. Seu destino é um prédio onde um grupo de jovens, incluindo sua esposa, se reúne para promover manifestos contra a ordem política. O clima é tenso, os policiais e os jovens se enfrentam aos gritos e empurrões. Hoffman entra no prédio, um policial o segue. Ouve-se um tiro. Corta para o letreiro: FACA NA CABEÇA. 

O diretor Reinhard Hauff declarou que o filme surgiu de uma história vivida pelo roteirista Peter Schneider. Schneider acompanhou um paciente na Itália que, após sofrer um acidente, passou por um longo processo de reabilitação, tentando recuperar a fala e a memória. 

Após os créditos do filme, a narrativa acompanha Hoffman, baleado na cabeça pelo policial, no hospital, passando por diversas fases para recuperar os movimentos, a memória e a capacidade de se expressar. O contexto do filme é o tenso clima político do final dos anos 70 na Alemanha. Os policiais acusam Hoffman de ser terrorista, a história ganha a mídia, colocando um suposto e pacato geneticista como um perigo para a nação. A perda da memória impede Hoffman de se defender: ele não se lembra de nada da noite do atentado. 

“Essa foi uma das abordagens. De alguém que sofreu um acidente ou o que quer que fosse, tentando começar do zero ao lado de seus amigos, tendo que reaprender e desenvolver tudo de novo com uma nova lógica e uma nova intensidade para reencontrar a verdade. Foram também os efeitos dos acontecimentos políticos que nos moveram. Mas a questão era: quem é essa pessoa, esse personagem principal do filme? Alguns dizem ser um terrorista, outros tiram vantagem dele para seus interesses políticos. E ele está sozinho tentando descobrir a verdade com essa energia e intensidade recém-descobertas.” – Reinhard Jauff

O clímax do final é o tenso confronto em busca da verdade. Hoffmann visita o policial autor do tiro e os dois começam um perigoso jogo verbal e de atitudes – simulando o acontecimento da noite. O inesperado final em aberto é provocativo em questões pessoais e políticas.

Elenco: Bruno Ganz, Angela Winkler, Hans Christian Blech, Heinz Hoenig, Hans Brenner, Udo Samel. 

As praias de Ouroet

As praias de Orouet (Du côté d’Orouet, França, 1971), de Jacques Rozier. 

Caroline, Joelle e Kareen chegam a Orouet, sul da França, para passar as férias de verão. Elas ficam na casa da família de Kareen, um velho sobrado de frente para o mar. Pouco depois, Gilbert, colega de trabalho de Joelle, se junta ao grupo. 

A narrativa é demarcada por inserts que anunciam os dias e as horas do mês de setembro. As jovens se aventuram diariamente pelas praias, fazendas da região, um cassino que mais parece uma vila de pescadores. A virada amorosa acontece quando elas conhecem Patrick, um velejador da região (atenção para a espetacular sequência de Patrick, Caroline e Joelle velejando, o vento fustigando o barco e as velas – um primor de filmagem em mar aberto). 

O diretor Jacques Rozier experimentara esse tipo de narrativa, jovens que se deliciam ao mar e ao sol, no curta Blue Jeans (1958). Em As praias de Orouet, o diretor se consagra com um estilo de filmagens livres, improvisadas, quase como se a câmera também se deixasse levar pelos dias de verão. “Rozier começava a filmar as jovens na praia à tarde, continuava até ao anoitecer e terminava com algumas sequências à luz dos faróis dos carros. Um filme dele é um mosaico, uma invenção permanente, algo muito raro no cinema – Jean-François Stévenin, ator e realizador.

Nada de surpreendente acontece nas quase três horas de duração do filme. Cada sequência acompanha momentos do grupo marcados pela extroversão, pelas brincadeiras em casa e nas praias, pelas refeições, por momentos de melancolia. São as férias de verão em que tudo, ou nada, pode acontecer. 

Elenco: Caroline Cartier (Caroline), Daniele Croisy (Joelle), Françoise Guégan (Kareen), Patrick Verde (Patrick), Bernard Menez (Gilbert).

Tiro de misericórdia

Tiro de misericórdia (Der fangschulft, Alemanha, 1976), de Volker Schlondorff.

Erich von Lhomond (Matthias Habich) é um oficial do exército alemão que, após a Primeira Guerra Mundial, comanda suas tropas na luta contra o Exército Vermelho, nos Países Bálticos. Grande parte da trama se passa na Letônia, na propriedade da família de Konrad von Reval (Rüdiger Kirschstein), soldado e amigo de Erich. Sophie von Reval (Margarethe von Trotta), irmã de Konrad, administra a propriedade e sua simpatia pelos comunistas vai provocar a virada trágica da narrativa. 

O diretor Volker Schlondorff, na época casado com Margarethe von Trotta, adaptou o romance homônimo de Marguerite Yourcenar. O filme tem como tema central um sugestivo triângulo amoroso: Sophie se apaixona por Erich, que a rechaça de forma agressiva – a sugestão é sobre a relação entre Erich e Konrad. Em uma cena, Volkmar, soldado apaixonado por Sophie, declara: “Ele (Erich) é esperto, conquista a irmã para tentar conquistar o irmão.”

O título do filme alude a um dos finais mais tristes e frios do cinema de todos os tempos. Sophie, grande personagem da narrativa, passa por um processo de degradação moral, motivada pela frieza com que é tratada por Erich, cuja verdadeira paixão é a guerra. Segundo a própria Sophie, “onde ele pode provar sua virilidade masculina”. 

Sophie abandona a propriedade e se junta aos comunistas, sendo considerada traidora. Ela é capturada pelas tropas de Erich e ouve com dignidade a sentença: “nenhum dos lados está fazendo prisioneiros.” Diante de seu amor, no gesto final, Sophie revela sua admirável força social, política e humana. 

Woyzeck

Woyzeck (Alemanha, 1979), de Werner Herzog. 

O soldado raso Woyzeck (Klaus Kinski) vive em uma pequena vila alemã do século XIX. Ele cumpre suas obrigações com dedicação e zelo e só anda correndo pela cidade. É casado com Marie, com quem tem um filho de dois anos. Leva uma vida mísera, sobrevivendo das moedas que ganha do médico da cidade, que usa Woyzeck como cobaia de experimentos físicos e psicológicos. O capitão do regimento também despreza e humilha Woyzeck que aceita tudo com resignação. O soldado sofre também com delírios de perseguição.  

O filme é baseado na peça inacabada de Georg Buchner (o autor faleceu aos 23 anos antes de terminar a obra), considerada uma das mais populares do teatro alemão. Klaus Kinski repete a parceria com o diretor Werner Herzog, os dois tinham acabado de finalizar Nosferatu (1979). 

A narrativa é centrada na lenta degradação de Woyzeck, cada vez mais atormentado pela miséria e pelas humilhações, seus delírios crescem. O estopim acontece quando ele suspeita que Marie está tendo um caso com um oficial. A longa e triste sequência perto do final aponta os limites da mente humana, com uma interpretação sublime de Klaus Kinski. 

Elenco: Klaus Kinski (Woyzeck), Eva Mattes (Marie), Wolfgang Reichmann (Capitão), Willy Semmelrogge (Doutor), Paul Burian (Andres).

Os sobreviventes

Os sobreviventes (Los sobrevivientes, Cuba, 1979), de Tomás Gutiérrez Alea.

Tomás Gutiérrez Alea se inspira em O anjo exterminador (1962), de  Luis Buñuel, para compor uma das severas críticas às classes dominantes cubanas. Após a revolução cubana, a aristocrática família Orozco se isola na propriedade rural, uma mansão suntuosa. Vicente Cuervo é promovido a tutor da família, ficando responsável por administrar os bens e o dinheiro dos Orozco. Em uma festa, ele é flagrado no jardim fazendo sexo com uma das filhas de Sebastián Orozco. Forçado a se casar, passa a integrar a família. 

A narrativa mescla críticas contundentes à elite cubana, representada pelos Orozco, que se recusam a aceitar a revolução, com esquetes de verdadeiro humor negro. Após cada notícia que anuncia represálias, principalmente dos EUA, a trupe formada por dezenas de isolados na mansão, celebra e brinda o fim da revolução. Depois voltam a um estado de letargia, comendo e bebendo sem parar, brigando entre eles, se escondendo no porão da casa com medo do ataque nuclear. 

A narrativa acontece inteiramente dentro da casa e nos arredores com ações de humor negro que assumem a influência surrealista. O padre foge da casa e delega suas funções a um dos integrantes da família, que assume o posto com fervor religioso.  O motorista rouba o carro e deixa escrito na garagem: “Nós também podemos ter um Buick.” A matriarca da família morre no exílio americano e seu último desejo é ser enterrada em Cuba: as cinzas dela são remetidas dentro de uma lata de Sopa Knorr. 

Elenco: Enrique Santiesteban (Sebastián Orozco), Juanita Calevilla (Dona Lola), Germán Pinelli (Pascual Orozco), Ana Viña (Fina Orozco), Reynaldo Miravalles (Vicente Cuervo), Vicente Revuelta (Julio Orozco). 

Duas mulheres

Duas mulheres (Ők ketten, Hungria, 1977), de Márta Mészáros, acompanha a improvável amizade que se forma entre duas mulheres de diferentes gerações. Mari (Marina Vlady) é casada, tem dois filhos já adultos, e administra um albergue para mulheres. Juli (Lili Monori) tem uma filha ainda criança e sofre violência doméstica de seu marido alcoólatra. Ela se refugia no albergue, quebrando as regras, que não permite a entrada de crianças, mas se torna protegida de Mari.

A amizade entre Mari e Juli passa por momentos ternos e agressivos, evoluindo para descobertas mútuas e solidariedade. Enquanto Juli tenta se desligar de sua relação abusiva, Mari se descobre em um casamento infeliz e sem perspectivas e passa a flertar com a infidelidade e o alcoolismo.  

Márta Mészáros tece mais uma narrativa que revela a luta constante das mulheres húngaras em busca da libertação das amarras sociais. A filha de Julie é interpretada por Zsuzsa Czinkóczi que, nos anos 80, será a protagonista da aclamada trilogia autobiográfica de Márta Mészáros, composta por: Diário para meus filhos (1984), Diário para meus amores (1987) e Diário para meu pai e minha mãe (1990). 

Adoção

Adoção (Örökbefogadás, Hungria, 1975), de Márta Mészáros.

Kate (Katalin Berek) é uma operária que, aos 42 anos, sente desejo de ter um filho com seu amante casado, pai de dois filhos. Diante da recusa do amante, ela passa a considerar a ideia de adoção, principalmente depois que conhece Anna (Gyongyver Vigh), uma adolescente que vive em um orfanato. 

Adoção é o primeiro filme dirigido por uma mulher a conquistar o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim. Márta Mészáros, cuja grande marca temática em sua obra é o feminismo, aborda com leveza o tema da maternidade. A relação entre Kate e Anna é fascinante, composta por ternura, às vezes uma certa agressividade verbal e recusa, mas sempre com esse olhar intimista das mulheres sobre si mesmas. 

A ousadia do cinema da diretora húngara se mostra durante a trama. Anna leva seu namorado, também adolescente, para a casa de Kate, onde se trancam no quarto explorando a sensualidade e o erotismo. São dois adolescentes em belas cenas eróticas que, com certeza, não teriam espaço no cinema atual.