As herdeiras

As herdeiras (Orokseg, Hungria, 1980), de Márta Mészáros.

Budapeste, 1936. Szilvia (Lili Monori) é uma mulher rica que se vê pressionada pelo pai, empresário, a ter um filho. É a condição para ela herdar a fortuna da família. No entanto, Szilvia é estéril e oferece dinheiro a Irene (Isabelle Huppert), jovem judia, a conceber um filho com seu marido. 

O triângulo amoroso que se forma a partir deste acordo deflagra os conflitos da narrativa que beira a tragédia quando explode a Segunda Guerra Mundial e começam as perseguições aos judeus. Isabelle Huppert, em um de seus primeiros papeis no cinema, domina a trama. Sua personagem luta pelo seu amor e por seus filhos, mas não se esconde dos nazistas, encarando com altivez o seu destino. O cinema feminista de Márta Mészáros lança um olhar cruel sobre a divisão de classes e a conivência da burguesia europeia com os crimes cometidos pelos nazistas e seus aliados.

Elenco: Isabelle Huppert (Irène), Lili Monori (Szilvia), Jan Nowicki (Ákos), Zita Perczel (Teréz), Sándor Szabó (Komáromi). 

Que se faça luz

Que se faça luz (Let there be light, EUA, 1980), de John Huston.

Durante a Segunda Guerra Mundial, cinco grandes diretores de Hollywood embarcaram para a Europa: John Huston, William Wyler, John Ford, George Stevens e Frank Capra.  O objetivo era participar do esforço de guerra, documentando os combates no continente europeu.  A série Five came back narra a odisseia dos diretores e traz depoimentos de importantes cineastas contemporâneos sobre o processo e as obras documentais criadas sobre a guerra.

O documentário Que se faça luz, filmado em 1946, se destaca devido à temática e às polêmicas suscitadas. John Huston visitou hospitais psiquiátricos e coletou depoimentos de veteranos da guerra que enfrentavam transtornos psicológicos devido às experiências em frentes de combates. A partir dos anos 70, a doença foi denominada de transtorno do estresse pós-traumático. 

John Huston contou com a colaboração de médicos e pacientes, que permitiram que algumas sessões fossem gravadas, incluindo práticas de hipnose. O que se vê nas telas é um retrato doloroso e cruel dos traumas causados pela guerra, não permitindo, às vezes, a reintegração dos soldados à sociedade e à vida familiar.

O governo americano considerou o documentário impróprio para veiculação, alegando que mostrava a condição dos soldados de forma desmoralizante. O filme foi censurado durante mais de 40 anos, ganhando uma restauração em 1980, quando finalmente veio a público como uma contundente denúncia da guerra e seus efeitos permanentes.

Toda uma noite

Toda uma noite (Toute une nuit, França, 1982), de Chantal Akerman. 

A câmera de Chantal Akerman acompanha vários casais durante uma noite quente do verão de Bruxelas. A narrativa fragmentada tem como tema o romance, encontros que acontecem em bares, restaurantes, quartos, conversas ao telefone. O silêncio e a atmosfera escura da noite ditam o tom do filme, um mosaico de encontros e conflitos que não se desenvolvem, não se resolvem, apenas anunciam aquilo que atormenta os casais: o sexo, o amor, a rejeição. 

Anos dourados

Anos dourados (Golden eighties, França, 1986), de Chantal Akerman.

A experimentalista Chantal Akerman faz uma incursão pelo filme de gênero, sem abrir mão de suas ousadas críticas sociais e morais. A narrativa se passa em um shopping, com cenário estilizado, caricatural, cores exuberantes, assim com os personagens que desfilam figurinos, maquiagens e cabelos em estilos extravagantes, bem anos 80. 

A trama principal, misto de musical, comédia e drama, segue um triângulo amoroso formado pelos jovens Pascale e Mado. Ele, filho dos proprietários de uma loja de roupas, ela, cabeleireira no irreverente salão de Lili, que integra o triângulo. Os personagens secundários também narram suas desventuras amorosas do passado e do presente, sempre com o tom de desilusão e solidão da consagrada diretora belga, (cujo filme Jeanne Dielman, hoje lidera a lista de melhor de todos os tempo da Revista Sight & Sound). 

Trem mistério

Trem mistério (Mystery train, EUA, 1989), de Jim Jarmusch, é composto por três histórias que se entrelaçam em um hotel decadente, em Memphis. Na primeira, um jovem casal japonês chega à cidade e visita Graceland. Eles são fanáticos por rock e querem conhecer tudo sobre o legado musical de Elvis Presley. 

A segunda história acompanha Luísa, uma viúva italiana que, após despachar o caixão do marido para a Itália, se vê sem rumo na cidade. Ela também se hospeda no hotel, dividindo o quarto com uma moradora local. Durante a noite, a italiana é visitada pelo fantasma de Elvis Presley. 

Nesse mesmo hotel, uma gangue de jovens se esconde após praticar um assalto. Johnny, conhecido como Elvis, está em depressão, motivada pelo abandono da namorada. A terceira história é recheada de violência e humor, bem ao estilo Jim Jarmusch. 

As três histórias se passam na mesma noite e os hóspedes são recebidos por uma dupla surreal de porteiros. Trem mistério é uma grande homenagem, recheada de nostalgia, à cultura pop dos EUA, representada por Elvis Presley e por Memphis que carregam, assim como o hotel e seus hóspedes, uma certa decadência.  

Estranhos no paraíso

Estranhos no paraíso (Stranger than paradise, EUA, 1984), de Jim Jarmusch, tem um lugar na lembrança de todo cinéfilo que aprendeu a amar os road-movies a partir dos anos 70. A narrativa acompanha a jornada de três jovens, os húngaros Willie (John Lurie) e Eva (Eszter Balint) e o americano Eddie (Richard Edson). Os três embarcam em uma jornada rumo à Califórnia, meio sem rumo e sem dinheiro, bem ao estilo underground da geração perdida dos anos 80. 

A história é contada em três capítulos: A Chegada de Eva, Cleveland e Paraíso. O tom de passividade e quase alienação dos jovens é pontuado pela bela fotografia em preto e branco, planos longos, resultando em um ritmo lento, diálogos mínimos entre os três viajantes e trilha sonora composta por música húngara e rock and roll. É o olhar melancólico, porém com um leve bom humor, de Jarmusch sobre o american way of life

Uma curiosidade genial sobre o filme está no depoimento de Wim Wenders, outro gênio do road-movie, sobre como o acaso fez com que ele ajudasse Jim Jarmusch a realizar Estranhos no paraíso

“Tem um filme que preciso mencionar: Estranhos no Paraíso. Jim Jarmusch era um assistente muito quieto no filme que eu fiz com Nicholas Ray, Um Filme para Nick. Jim tinha uma banda de rock, uma ótima banda, por sinal, mas queria fazer cinema. Ele era muito modesto, quieto, não falava muito. Um dia, no final das gravações, ele veio ao meu escritório, em Nova York. Abriu a geladeira, sem imaginar que não havia uma garrafa de Coca-Cola ali dentro, e sim restos de filme. Particularmente duas grandes caixas de negativos em preto-e-branco, 35 milímetros, que restaram das gravações de O Estado das Coisas. Eu não tinha usado aqueles negativos, o que é estranho, porque sempre uso meus filmes até o último metro. Mas aqui estavam quatro caixas intocadas de sobras de filme. Comecei a perceber que Jim vinha todo dia, sempre abria a geladeira e ficava olhando fixamente para aquelas caixas. Ele não dizia nada, até que um dia finalmente me diz: “o que você vai fazer com estes negativos?” Eu lhe disse: “não tenho um projeto em preto-e-branco agora, então não vou fazer nada por enquanto”. Jim volta para a geladeira, abre a porta, mais uma vez olha fixamente para os filmes e me diz: “você pode dá-los pra mim?”. Disse-lhe: “claro, melhor fazer algo com eles antes que envelheçam aí”. Então ele vai e faz Estranhos no Paraíso. Ele filmou em 1984, e eu só vi o filme uns dois anos depois. Jim ganhou, com este filme, a Câmera de Ouro no Festival de Cannes [para diretores estreantes]. Eu… hum, não deveria dizer isso, mas ganhei a Palma de Ouro com Paris, Texas, e naquela noite nós dois éramos os homens mais felizes deste planeta. Nós jogamos pinball a noite toda, ficamos terrivelmente bêbados, e estávamos tão felizes um pelo outro. Quero dizer, eu estava orgulhoso de ter ganhado a Palma de Ouro, mas o fato de Jim ter ganhado a Câmera de Ouro era algo muito melhor. Jim sentia o mesmo. Ainda o vejo olhando para aquela geladeira. Às vezes, é o que basta.” – Palavras de Cinema

Férias permanentes

Férias permanentes (EUA, 1980), primeiro longa-metragem de Jim Jarmusch acompanha o jovem Allie (Christopher Parker)  em suas andanças por uma Manhattan quase distópica, formada por ruas e prédios vazios, o lixo se aglomerando pelas ruas e um ar decrépito pairando sobre tudo. O filme custou apenas 12 mil dólares e representou uma espécie de divisor de águas para o cinema indie americano, consagrando o diretor. 

Parker não estuda, não trabalha, vive deambulando sem rumo, é o típico representante de uma cidade caótica, que entre os anos 70 e 80 atingiu níveis estratosféricos de violência urbana. Jim Jarmusch compôs a deprimente trilha sonora de Férias permanentes, cuja sensação de melancolia e introspecção  está presente também na fotografia fria e no estilo de câmera quase documental. 

Elemento de um crime

Elemento de um crime (The Element of Crime, Dinamarca, 1984), de Lars von Trier. 

O primeiro filme de Lars von Trier apresenta uma Europa distópica, filmada em tons sépia queimados, evocando a temática do filme: fragmentos de memória que se confundem na mente do ex-policial Fisher (Michael Elphick) durante a investigação de uma série de crimes, cometidos por um serial killer que executa meninas que vendem bilhetes de loteria. 

O estilo e fotografia noir do filme remetem ao clássico Blade Runner, um dos precursores do estilo neo-noir presente em vários filmes policiais e de ficção contemporâneos. Para investigar os crimes, Fisher se baseia nos métodos de seu mentor Osborne (Esmond Knight), publicados no livro Elementos de um crime.

Durante o desenrolar da trama o espectador se perde nos meandros das mentes perturbadas dos três protagonistas que estão em uma espécie de disputa: Osborne, Kramer (Jerold Wells), o policial chefe da cidade, e Fisher. A Europa decadente, esfacelada, tomada por uma chuva intermitente é o cenário para criminosos sem escrúpulos.

Epidemia

Renomados cineastas mais cedo ou mais tarde realizam filmes reflexivos sobre o processo de fazer cinema. Em Epidemia (Epdemic, Dinamarca, 1987) o diretor Lars von Trier interpreta Lars que, junto com Niels (|Niels Versel) escrevem um roteiro sobre uma possível epidemia. O roteiro deve ser terminado em cinco dias. Durante este tempo, os roteiristas percorrem possíveis locações e se defrontam com uma verdadeira epidemia que começa a assolar a Europa.

Lars von Trier compôs a trilogia Europa, formada por Elementos de um crime (1984), Epidemia (1987) e Europa (1991). Nas três obras, destacam-se o olhar depressivo e amargurado diante de uma Europa devastada pela atividade cruel do próprio homem, provocando guerras, epidemias, condições climáticas adversas, contribuindo cada vez mais para uma sociedade injusta, desequilibrada em questões sociais, econômicas, políticas, cujos habitantes sofrem com as constantes crises psicológicas, de identidade, perdidos em países que parecem não mais existir. 

A narrativa de Epidemia segue o tradicional estilo da metalinguagem, com ficção e realidade se alternando através de uma narrativa fragmentada, não-linear. A experiência dentro do cinema provoca a mistura de documentário e ficção, grande reflexão sobre a arte associada ao real. 

Down by law

Down by law (EUA, 1986), de Jim Jarmusch.

A abertura do filme é fascinante: um travelling lento pelas ruas de um bairro periférico de Nova Orleans, a fotografia em preto e branco emoldurando a paisagem soturna. O travelling é entrecortado por duas cenas de interior, apresentando os protagonistas Zack (Tom Waits), DJ desempregado e o cafetão Jack (John Lurie) em seus quartos. Ambos são envolvidos em uma armação por desafetos e são encarcerados na mesma cela. Bob (Roberto Benigni), um italiano que mal sabe falar inglês, acusado de matar um homem, se junta aos dois. 

O diretor indie americano Jim Jarmusch tece um panorama da América marginal por meio desta tríade de atores em atuações excepcionais. A entrada em cena do italiano muda o panorama da cela, até aquele momento ocupada pela desilusão, pela tristeza agressiva. Um dos mais belos momentos da película é a canção entoada pelos três, uma brincadeira com o inglês atrapalhado de Roberto, que contagia todo o corredor. 

O terceiro ato, em um imenso pântano, traz de volta a paisagem desoladora dessa América marginal, agora um deserto pantanoso. Assim como o bairro do início, também uma espécie de submundo habitado não por criminosos, mas por pessoas opostas ao american way of life que apenas andam em círculos.