Brasil – O filme

Sam Lowry é um pacato funcionário do governo, em um país não identificado que afoga seus cidadãos em práticas burocráticas. A distinção de classes é a marca da sociedade, pessoas aliadas ao governo gozam de privilégios enquanto os trabalhadores sofrem com vigílias, perseguições, obrigados pela infindável máquina burocrática à uma vida automata. 

A obra de Terry Gilliam foi filmada quase ao mesmo tempo de 1984, de Michael Radford. Os dois filmes buscaram inspiração no célebre livro de George Orwell. Em Brasil, o filme, o tom crítico e ácido de Terry Gilliam, ex-Monty Python, se transforma em uma trama opressora, marcada por estéticas expressionistas e surrealistas. O tedioso cotidiano de Sam é interrompido por devaneios, quando ele se transforma em um herói alado que tenta proteger a garota dos seus sonhos de monstros japoneses. A reviravolta acontece quando Sam conhece Gilly (Katherine Helmond), motorista de caminhão idêntica à jovem dos seus sonhos, possivelmente uma rebelde que luta contra o governo. 

“Em Brazil, a televisão deixa de ser a origem de sua produção e assume um papel de símbolo de informação e alienação da grande massa acerca da ditadura. Com traços expressionistas, o filme cria contrastes entre luz e sombra que revelam o poder exercido por tal personagem, além de ter como maior referência estética uma versão atualizada do filme Metropolis (1927), de Fritz Lang. A sociedade representada é uma clara crítica ao governo de Margareth Tatcher, que ficou conhecida por seu pulso firme, conservadorismo e burocracia, não deixando de lado traçar manias da burguesia inglesa: a mãe de Sam, sendo seu principal símbolo, que faz procedimentos estéticos a todo momento para parecer nova e assim mascarar sua face real, mas continua com seus pensamentos retrógrados.” – Matheus Mendes Schlittler. 

Brasil, o filme (Brazil, Inglaterra, 1985), de Terry Gilliam. Com Jonathan Pryce, Robert de Niro, Katherine Helmond, Ian Holm, Bob Hoskins.

Referência: O muro fílmico de Pink Floyd: The Wall. Matheus Mendes Schlittler. Dissertação, curso de Cinema e Audiovisual, PUC Minas, 2020. 

O selvagem da motocicleta

O jovem Rusty James vive com seus amigos nas ruas de uma cidade decadente. O cotidiano é marcado por beberagens em bares, jogatinas em mesas de sinuca, tentativa de sedução das jovens, brigas nas ruas com membros de outros grupos. Rusty vive sobre a sombra do irmão, conhecido como motoqueiro, um mito para os antigos membros das gangues desfeitas pela evolução do tráfico de drogas. A chegada repentina do irmão provoca revisões no relacionamento e no destino dos personagens.

O selvagem da motocicleta tem uma das fotografias mais deslumbrantes em preto e branco do cinema dos anos 80 que já anunciava a revolução no tratamento das imagens via tecnologia digital. As únicas imagens em cores são dos peixes no aquários, os rumbles fishes do título original, uma metáfora à condição de daltônico do motoqueiro e do sonho de liberdade que atormenta os irmãos. Um filme para ver e rever com os olhos presos na beleza das imagens.

O selvagem da motocicleta (Rumble fish, EUA, 1983), de Francis Ford Coppola. Com Matt Dillon (Rusty James), Mickey Rourke (O motoqueiro), Nicolas Cage (Smokey), Diane Lane (Patty), 

Os renegados

Na primeira sequência já sabemos que a protagonista está morta. Mona (Sandrine Bonnaire) é encontrada jogada em uma vala em uma fria manhã de inverno, no sul da França. A polícia conclui que, possivelmente, o frio é a causa da morte.

A diretora Agnès Varda estrutura o filme como uma narrativa policial (sem a polícia presente): personagens que cruzaram com a jovem em seus últimos dias relatam para a câmera os encontros, tentando elucidar para o espectador aspectos da personalidade de Mona, que escolheu andar pelas estradas, vivendo ao acaso.

São relatos fragmentados, às vezes conversas desencontradas com a câmera, cabe ao espectador juntar os pedaços. O único relato denso é de uma professora que dá carona para Mona e passa algum tempo com ela na estrada e durante uma conferência. Os caminhos e encontros de Mona traçam um panorama dos anos 80, quando sociedades mergulharam em crises que provocaram nas pessoas dilemas existenciais, buscas, frustrações, desilusão completa com as estruturas sociais. No final, sabemos apenas o que já estava claro no início: Mona está morta. 

Os renegados (Sans toit ni loi, França, 1985), de Agnès Varda. Com Sandrine Bonnaire, Macha Méril, Stéphane Freiss. 

Quando chega a escuridão

Caleb vê Mae saindo do bar à noite. Oferece a ela uma carona, os dois vagueiam pela estrada até que, perto do amanhecer, Mae implora para ser levada embora. O jovem se recusa, começa a beijá-la até ser mordido no pescoço. 

Quando chega a escuridão é a típica história de vampiro com tons modernos que fez muito sucesso nos anos 80, a exemplo de Fome de Viver (1983) e Garotos perdidos (1987). Quando se transforma em vampiro, Calebe se junta à  gangue liderada por Jess, todos com visuais que remetem a jovens rebeldes. Como Caleb se recusa a matar e beber sangue humano, Jess dá a ele 24 horas para se decidir, do contrário morrerá. 

A estética da película é marcada pelos tons sombrios da noite, com névoas recortando os vampiros em belas cenas nas estradas. Outra característica do cinema dos anos 80 que buscou inspiração no cinema noir, consagrando o que foi categorizado como neo noir.  A violência apresenta sua cara na sequência do bar e no final do filme, com destaque para o menino vampiro queimando na estrada enquanto corre atrás da menina por quem se apaixonou. 

Quando chega a escuridão (Near dark, EUA, 1987), de Kathryn Bigelow. Com Adrian Pasdar (Cale), Jenny Wright (Mae), Lance Henriksen (Jesse), Bill Paston (Severen), Jenette Goldstein (Diamondback), Tim Thomerson (Loy), Joshua Miller (Homer), Marcie Leeds (Sarah). 

Um assunto de mulheres

Segunda guerra mundial. Em pequena cidade do interior da França ocupada, Marie cuida de seus dois filhos pequenos enquanto seu marido está em combate. Ela é bem sucedida ao ajudar sua vizinha a fazer um aborto. Quando seu marido é dispensado devido a ferimentos, Marie tem que se virar para sustentar a família e passa a ganhar dinheiro com abortos e com aluguel de um quarto para a amiga prostituta receber seus clientes. 

Isabelle Huppert foi premiada em festivais pelo desempenho como a jovem impetuosa e inconsequente que tenta não apenas sobreviver, mas ascender socialmente durante a guerra com atividades clandestinas. Não se vê como delinquente, é apenas seu modo de ganhar a vida e ajudar as mulheres. Em contrapartida, seu marido fecha os olhos para tudo, aceitando sem questionar o dinheiro de Marie. A crueldade e hipocrisia da guerra afloram no final, quando os homens decidem que Marie deve ser punida exemplarmente, enquanto eles mesmos enviam e executam crianças judias nos campos de concentração. 

Um assunto de mulheres (Une affaire de femmes, França, 1988), de Claude Chabrol. Com Isabelle Huppert (Marie Latour), François Cluzet (Paul), Nils Tavernier (Lucien), Marie Brunel (Ginette).  

Cujo

No início dos anos 80, estudei no Estadual Central. Acabada as aulas, descia a pé, só ou em turma, pela Rua São Paulo em direção ao centro. Cerca de dois quarteirões abaixo do colégio, uma bela casa, típica do bairro de classe média alta, deixava a vista adentrar pela grade, se deparar com o jardim e dois grandes cachorros São Bernardo, lindos, imponentes. Os cães andavam do característico jeito desengonçado até a cerca, metiam os focinhos pela grade a espera de carinho. Impossível não estender a mão, se abaixar e morrer de vontade de rolar na grama com dois gigantes tão carinhosos, infantis. 

Quando Cujo (EUA, 1983), de Lewis Teague estreou nos cinemas mais ou menos na mesma época, o terror tomou conta de mim. Não necessariamente pelo filme em si, produção de baixo orçamento, o típico terror B que imperava na época. Durante dias não consegui me desvencilhar da premissa: o horror, movido por razões incompreensíveis, como vírus que se apossam do corpo após uma mordida de morcego,  pode irromper dos seres mais dóceis. Um cão São Bernardo. 

Baseado na obra de Stephen King, livro lançado em 1981 como Cão RaivosoCujo centra a narrativa em um casal em crise. Donna Trenton (Dee Wallace) e Daniel Hugh Kelly (Vic Trenton) têm um filho, Tad (Danny Pintauro). Donna tem um caso com um belo morador da pequena cidade litorânea onde vivem e o casamento caminha para a separação. 

No entanto, Cujo é o protagonista. No início do filme, o cão corre meio como brincadeira atrás do coelho no bosque. Passa por gramados, arbustos, riacho e enfia a grande cabeça na toca do coelho. Os latidos de Cujo despertam a ira de morcegos no teto, pois o que era aparentemente uma toca de coelho é, na verdade, refúgio destes aterradores seres noturnos. Após a mordida, a narrativa acompanha uma das grandes transformações de personagem. 

O animal começa a lutar consigo mesmo, alternando entre a tradicional docilidade e atitudes raivosas que selam seu destino. Em alguns momentos, o cão se afasta de pessoas com quem convive, como se em fuga do instinto desconhecido que começa a tomar conta. Aos poucos, as alternativas estéticas e de linguagem do fascinante cinema B ajudam o espectador a se defrontar como emoções que variam do puro medo ao repúdio (como eu) por colocarem o São Bernardo nesta situação. 

“A fotografia de Jan de Bont, a montagem de Neil Travis e a trilha sonora de Charles Bernstein são alguns dos elementos que transformam a obra em uma experiência fascinante e também angustiante. O confinamento de Donna e Tad num carro faz do ambiente claustrofóbico uma ameaça tão grande quanto o animal que os cerca. Destaque ainda para os departamentos de arte e maquiagem, principalmente na abordagem do cachorro. Eles conseguiram transformar um belo animal em algo realmente horripilante. Para isso, não se preocuparam com excessos. É gore, é para ser grotesco. E é por isso que funciona de forma tão eficiente.” – Lucas Salgado. 

Ainda hoje, ao rever o filme, não consigo me assustar com a impressionante sequência do carro parado em frente à velha e suja oficina, o cão tentando matar mãe e filho enclausurados. Só consigo pensar que um São Bernardo não merece se transformar naquela grotesca encarnação do mal. 

Referência: Stephen KingO medo é seu melhor companheiro. Breno Gomes e Rita Ribeiro (org.).  Catálogo da mostra patrocinada e exibida no Centro Cultural Banco do Brasil. 

Paixão

Não existe trama definida em Paixão, de Godard. O filme é sucessão de cenas replicando imagens famosas de diversos pintores, incluindo Goya, Rembrandt, Delacroix, Ingres e El Greco. O cineasta polonês Jerzy está na Suiça tentando rodar seu filme no melhor estúdio do país. Ele está hospedado no hotel de Hanna, mas se envolve com outra bela mulher: Isabelle, jovem operária que acabara de ser demitida da fábrica onde trabalha pelo marido de Hanna. 

Poderia ser apenas mais uma história de triângulo amoroso, mas as lentes de Godard transformam a película em experimento estético, transitando entre o cinema e as artes plásticas. Em meio às belas imagens, verdadeiros quadros fixos, o crítico Godard tece comentários sobre o fazer cinematográfico, cada vez mais dominado pelo dinheiro; o desmonte da luta dos trabalhadores simbolizada na Polônia dos anos 80; a luta de classes que coloca operários ao bel prazer de seus patrões. É o cinema de Godard: imageticamente político. 

Paixão (Passion, França, 1982), de Jean-Luc Godard. Com Isabelle Huppert, Hanna Schygulla, Jerzy Radziwiłowicz, Michel Piccoli.