Nosferatu, uma sinfonia do horror

Nosferatu, uma sinfonia do horror (Nosferatu, Alemanha, 1922), de F. W. Murnau.

É noite no castelo do Conde Orlok na Transilvânia. Hutter (Gustav von Wangenheim) beija com carinho a foto de sua esposa Ellen (Greta Schroeder).  Ele acha um pequeno livro na gaveta da escrivaninha, o abre e lê a inscrição: “Durante a noite, Nosferatu agarra a sua vítima e suga-lhe o sangue, como uma macabra bebida que lhe salvasse a vida. Cuidado até mesmo com a sua sombra, pois poderá ter horríveis pesadelos. Badaladas do relógio em formato de esqueleto anunciam à meia-noite. Hutter abre a porta do quarto e vislumbra na escuridão ao fundo, cena em profundidade de campo, o Conde Orlok (Max Shrek) e sua sombra, emoldurados por uma luz branca. Hutter corre para a cama, o Conde entra lentamente no quarto, as mãos longas, o rosto cadavérico, o terror. O Conde se aproxima da cama. Montagem paralela mostra Ellen em Londres acordando em transe No castelo, a sombra do Conde Orlok se aproxima de Hutter e lentamente se debruça sobre sua vítima.”

 Em seu livro As sombras móveis, Luiz Nazário analisa elementos do expressionismo alemão, movimento do qual Nosferatu é representante significativo: “O espaço expressionista é sempre um espaço fechado, mas que ao mesmo tempo parece infinito. A escada é o instrumento por excelência da transição, instrumento do suspense e da tensão que envolve os personagens. E da sombra – metáfora do inconsciente, do lado obscuro da mente, do material reprimido – saem o mago, o tirano, o assassino, o demônio, o vampiro – seres proscritos pelo Bem, obrigados a viver na clandestinidade, nas trevas, num sonho intermitente.”   

Nosferatu é a primeira adaptação para o cinema do romance Drácula, de Bram Stoker. O diretor F. W. Murnau foi processado por herdeiros do escritor, devido ao não-pagamento de direitos autorais sobre a obra literária. Após o fim do processo, uma ordem judicial exigiu que todas as cópias do filme fossem destruídas (por pouco esse clássico do cinema não desapareceu por completo, a exemplo de tantos outros filmes da era do cinema mudo). O processo motivou a falência da produtora Prana – Nosferatu foi o único filme produzido pela empresa.

Uma das principais estratégias dos filmes expressionistas era a filmagem em estúdios o que facilitava o controle de referências decisivas do movimento: cenários estilizados; direção de arte composta por móveis e objetos distorcidos; maquiagem caricatural dos personagens; fotografia revolucionária que iluminava parcamente os ambientes, o branco recortado em pontos precisos sobre o ambiente negro, sombras de janelas e luzes de lampiões deixando entrever os monstros tão famosos: Cesare, Nosferatu, Golem, o diabo de Fausto, a andróide de Metrópolis, Dr. Mabuse. 

Nosferatu rompe a tradição de utilizar estúdios. Murnau filmou praticamente em locações, usando como cenários paisagens montanhosas, ruas de cidades antigas da Alemanha,  a aterradora morada do Conde Orlok, filmada no Castelo de Orava – Eslováquia. Entre as polêmicas que rodearam a produção, uma é tão assustadora como o próprio vampiro. Depois de filmar as cenas do navio infestado de ratazanas, os produtores, sem saber o que fazer com as centenas de roedores, soltaram-nos nas ruas da cidade. As sombras do terror em forma física. 

Referência: As sombras móveis. Atualidades do cinema mudo. Luiz Nazário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999

A boneca do amor

A boneca do amor (The doll, Alemanha, 1919), de Ernst Lubitsch, foi produzido no mesmo ano do clássico O gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene, que praticamente definiu os preceitos conceituais e estéticos do expressionismo alemão.

Forçado a se casar pelo tio, um rico aristocrata que deseja um herdeiro, o jovem Lancelot foge e se refugia em um mosteiro. Os monges passam a cobiçar o dote de Lancelot e o convencem a procurar um famoso fabricante de bonecas, idênticas às mulheres, e forjar o casamento. 

A história é baseada em texto de E. T. A. Hoffman e pode ser vista como um conto de fadas, a partir do momento em que a filha do fabricante toma o lugar da boneca. Lubitsch constroi a narrativa fortemente influenciado pelo expressionismo: cenários feitos a partir de papelão, linhas distorcidas, interpretação caricatural, com destaque para Ossi Oswalda no papel da boneca.

Segundo o crítico Luiz Santiago, Lubitsch, ainda em sua fase alemã, homenageia de forma metafórica o cinema: “Ernst Lubitsch Faz de A Boneca do Amor (Die Puppe) um exercício que sintetiza a Sétima Arte como ilusão e artefato, envolvendo-nos num universo onírico já influenciado pelo Expressionismo Alemão. Desde os momentos iniciais, quando o cineasta se apresenta e, literalmente, constrói uma maquete cênica diante dos nossos olhos, somos transportados para um mundo que abraça a artificialidade e celebra a criação como o coração da experiência cinematográfica. Essa abertura é uma declaração de intenções artísticas que posiciona o filme como metáfora do próprio cinema, onde tudo é construído para encantar, provocar e envolver.” – Plano Crítico

Elenco: Ossi Oswalda (Ossi), Hermann Thimmig (Lancelot), Victor Janson (Hilário). 

O testamento do Dr. Mabuse

O filme é a continuação da monumental obra de Fritz Lang, Dr. Mabuse (1922), de quatro horas de duração, dividido em duas partes. Agora, o Dr. Mabuse (Rudolf Klein-Rogge) está internado há dez anos em um centro psiquiátrico, sem falar, fazendo anotações sem parar em folhas avulsas. 

Do sanatório, ele controla uma rede de criminosos que pratica assaltos a bancos e joalherias, mas seu plano fatal é explodir uma indústria de produtos químicos e contaminar toda a cidade. Usando de seus poderes hipnóticos e, de certa forma, telepáticos, o Dr. Mabuse domina todos ao seu redor e confunde a polícia com intrincados estratagemas. Fritz Lang prenuncia muito do cinema noir, gênero que vai ajudar a consagrar posteriormente nos Estados Unidos.

A película foi realizada no início do cinema falada na Alemanha, mas o diretor preserva sua genialidade visual. A primeira sequência é tomada pelo silêncio, construindo uma narrativa de suspense durante a investigação de um policial em um edifício onde dinheiros falsos são produzidos. O ponto forte da narrativa são as breves aparições do Dr. Mabuse, com seus olhos hipnóticos e assustadores.

O testamento do Dr. Mabuse (Das testament des Dr. Mabuse, Alemanha, 1933), de Fritz Lang. Com Rudolf Klein-Rogge, Otto Wernicke, Thomy Bourdelle, Gustav Diesel, Rudolf Schindler. 

A caixa de Pandora (1919)

Lulu (Louise Brooks) usa de sua escancarada sensualidade para seduzir os homens que a cercam, entre eles um rico editor de jornal e o filho deste. Impulsiva, não se furtando a escandalizar a sociedade, Lulu gradativamente encaminha todos que se envolvem com ela à decadência física e moral. A caixa de Pandora (1919) é dos mais impressionantes filmes de todos os tempos. A encarnação de Louise Brooks como mulher fatal, de beleza arrebatadora, que exige apenas que a câmera se centre em seu rosto ingênuo, definiu muito do que se entende como erotismo destrutivo no cinema.

“Pabst cerca Brooks de impressionantes coadjuvantes e cenários fabulosos (o espetáculo no abarrotado camarim do cabaré ofusca tudo o que acontece no palco), porém é a personalidade vibrante, erótica, assustadora e comovente da atriz que gera identificação com o espectador moderno. A mistura de imagem e atitude de Brooks possui tanta força e frescor que ela faz Madonna parecer Phyllis Diller. Seu estilo de interpretação impressiona pela ausência de maneirismo para a era muda, dispensando os recursos da mímica e da maquiagem expressionista. Seu desempenho é também de uma extraordinária honestidade, já que nunca apela para a pieguice.”

A caixa de Pandora (Die buchse der Pandora, Alemanha, 1919), de G. W. Pabst. Com Louise Brooks, Fritz Kortner, Francis Lederer, Carl Goetz.

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider. Rio de Janeiro: Sextante, 2008.

O anjo azul

O professor Immanuel Rath (Emil Jannings) imitando o cacarejo de galinha diante de sua suprema humilhação é das cenas mais poderosas do início do cinema sonoro. A trama de O anjo azul foi concebida para aproveitar o sucesso de Emil Jannings, mas revelou ao mundo Marlene Dietrich, com todo o talento dramático e erótico da atriz. O autoritário professor vai ao cabaré que dá nome ao filme procurar e repreender severamente seus alunos que frequentam o lugar atraídos por Lola (Marlene Dietrich). Seduzido por Lola, o professor começa sua jornada rumo à decadência.

“Baseada no romance de Heinrich Mann, esta é uma história sobre a decadência, sobre o ‘movimento descendente’. No decorrer dela, Rath será reduzido a um palhaço quase inumano – espelhando o palhaço que aparece antes no papel de um dos vários duplos irônicos do malfadado herói. Sternberg frisa, com um rigor exemplar e sistemático, a verticalidade das relações de espaço no filme: Rath está sempre em uma posição mais baixa, erguendo os olhos para a imagem de Lola (como quando ela joga sua calcinha em cima da cabeça dele), a não ser quando – numa paródia da sua posição autoritária – é bajulado pelo sinistro diretor do teatro.”

O anjo azul (Der blaue engel, Alemanha, 1930), de Josef von Sternberg. Com Emil Jannings, Marlene Dietrich, Kurt Gerron, Rosa Valetti.

Referência: 1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schn

Macbeth: reinado de sangue

Macbeth: reinado de sangue (Macbeth, EUA, 1948) é um filme de baixo orçamento, feito para a Republic Pictures. A opção de Orson Welles foi trabalhar com estética teatral, a ação transcorrendo toda em estúdio, com cenários expressionistas e pouco movimento de câmera. O castelo de Macbeth é, na verdade, formado por grutas, escadas curvas e grandes espaços vazios, praticamente sem mobiliário, a não ser o trono real, feito de pedras cinzas. A partir deste filme, Welles se consolida como o primeiro grande cineasta independente dos EUA.

O resultado é uma obra marcada pela força das interpretações, principalmente de Orson Welles no papel de Macbeth. A câmera opressora ajuda a caracterização do monarca que enlouquece em sua luta pelo poder. Macbeth está, em várias cenas, muito próximo à câmera, com outros personagens dispostos ao longo dos amplos espaços, definindo visualmente o isolamento gradativo do monarca. A profundidade de campo determina que todos, passo a passo, vão se afastando. A traição ganha contornos simbólicos.

Elipses também estão entre as escolhas criativas de Welles. O assassinato de Duncan é sugerido do lado de fora da gruta, bem como as execuções por decapitação. As imagens mais fortes e sugestivas do filme ficam por conta das bruxas. À medida que prenunciam os feitos diabólicos, o espectador sabe que está diante do mal, resta apenas acompanhar o destino trágico dos personagens que se entregam a sentimentos tão antigos como o próprio texto de Shakespeare: inveja, cobiça, traição.

O gabinete do Dr. Caligari

O Dr. Caligari chega a Holstenwall, pequena cidade do interior da Alemanha, para apresentar sua atração na feira: o sonâmbulo Cesare acorda ao comando do Doutor e faz previsões assustadoras. Ao mesmo tempo, assassinatos começam a acontecer na cidade e a polícia elege Cesare o principal suspeito.

Esta narrativa mesclando policial e suspense se transformou no filme precursor do expressionismo alemão. O filme introduz as principais características estéticas que passam a dominar o gênero terror. A fotografia é estilizada, sombras assustadoras se projetam na parede. Rostos pálidos, recortados no negro, traduzem o medo. O clima gótico sobressai, recriando a noite tenebrosa das cidades. Os personagens são caricaturais, com interpretações teatrais. Por fim, o cenário é deturpado: casas amontoadas, janelas triangulares, móveis de dimensões desproporcionais, paredes sujas, quartos cubiculares, tudo remete ao mundo da arte expressionista.

Em contrapartida, Robert Wiene comanda o filme de forma conservadora, quase como se filmasse uma peça de teatro. “Surpreendentemente, Wiene, menos inovador do que a maioria dos seus colaboradores, faz pouco uso da técnica cinematográfica. (…) O filme se baseia completamente em recursos teatrais, com a câmera fixa no centro, mostrando o cenário e deixando os atores (especialmente Veidt) encarregados de todo movimento e impacto.” – 1001 filmes para ver antes de morrer

O gabinete do Dr. Caligari é um manifesto artístico nestes anos de construção da narrativa e da estética do cinema. A partir de Caligari, fotografia, iluminação, maquiagem e cenário alcançaram o status da arte nas telas do cinema. “O jogo dos atores integra-se à decoração, integrada à maquilagem e ao vestuário, integrados, por sua vez, à iluminação e aos cenários, num conjunto plástico e deformado, como se uma pintura expressionista tomasse vida e se movesse. Esta estilização de todos os elementos dramáticos do filme será designada, desde então, por caligarismo – expressionismo cinematográfico levado às últimas conseqüências.” – As sombras móveis: atualidade do cinema mudo.

O gabinete do Dr. Caligari (Das kabinett des Doktor Caligari, Alemanha, 1919), de Robert Wiene. Com Werner Krauss (Dr. Caligari), Conrad Veidt (Cesare), Friedrich Feher (Francis), Dagover Hans.

Referências:

1001 filmes para ver antes de morrer. Steven Jay Schneider (editor). Rio de Janeiro: Sextante, 2008

As sombras móveis: atualidades do cinema mudo. Luiz Nazário. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999

A morte cansada

Um homem misterioso levanta um enorme muro nos arredores de uma cidade na Alemanha. Nas redondezas, um casal de namorados desfruta de momentos idílicos, festejando a felicidade e o amor, até que o jovem desaparece. Desolada, a jovem sai em busca de seu amado e chega até o muro. Em uma cena impressionante, ela vê seu amado caminhando em direção ao muro, junto com outras pessoas. Ele para diante da jovem com olhar de uma tristeza imensa e atravessa o muro.  

A morte cansada é responsável por consagrar Fritz Lang no início da década de 20, quando o cinema alemão era determinado pelo expressionismo. O roteiro foi escrito por Lang e sua esposa, Thea Von Harbou, e apresenta uma questão dolorosa: o amor é capaz de vencer a morte? 

A jovem, tentando salvar seu amado, atravessa o muro e confronta a morte (o homem misterioso). A morte propõe a ela um desafio: devolve seu amado à vida caso ela consiga salvar a vida de uma pessoa que enfrenta o mesmo conflito, está apaixonada por quem vai morrer. Ela tem três chances, três narrativas paralelas são apresentadas, interpretadas pelos mesmos personagens.  

O ponto forte da película são os cenários impressionantes, a direção de arte e fotografia que remetem a essa linha tênue entre o real e o imaginário (preste atenção nas cenas da jovem soprando as velas que simbolizam o apagar da vida). Destaque também para a interpretação de Bernhard Goetzke que compõe a figura da morte desiludida, apática diante de seu “trabalho”. 

A morte cansada (Mude tod, der, Alemanha, 1921), de Fritz Lang. Com Lil Dagover, Bernhard Goetzke, Walter Janssen.