Sally, uma jovem e ingênua garçonete, se apaixona pelo pianista que toca onde ela trabalha. O caso resulta em uma gravidez, mas o pianista muda de cidade, em busca do seu sonho de ser compositor. A jovem vai à sua procura, mas é renegada e abandonada. Desesperada, sua decisão é se internar em uma instituição que cuida de jovens solteiras grávidas e buscam pais adotivos para as crianças.
Mãe solteira é o primeiro filme dirigido pela consagrada Ida Lupino. Ela assumiu o filme durante as filmagens, substituindo Elmer Clifton, que sofreu um ataque cardíaco. Lupino tinha 31 anos e foi responsável pelo roteiro do filme, além de atuar como co-produtora.
Lupino impôs um olhar feminino ao drama de Sally, sofrendo com o abandono e as angústias quase insuportáveis da sua decisão de ceder o filho para adoção. Uma característica marcante de Mãe solteira, fruto da experiência da diretora como atriz no cinema clássico americano, é a narrativa visual, com momentos dramáticos transmitidos por planos longos e pela montagem com cortes secos e precisos.
Mãe solteira (Not wanted, EUA, 1949), de Ida Lupino e Elmer Clifton. Com Sally Forrest (Sally Kelton), Keefe Brasselle (Drew Baxter), Leo Penn (Steve Ryan).
Muito anos de O poderoso chefão (1972), Johnny Gunman traz a história de dois gângsteres que disputam o controle da máfia em Nova York. Vicious Allie e Johnny Gunman são amigos desde a infância. Ambos trabalham para o chefão Loy Caddy, que é preso por sonegação de impostos. Os dois amigos começam então uma disputa pelo controle exclusivo da máfia, ao invés de dividirem territórios.
A narrativa se passa ao longo de uma noite e traz os elementos característicos dos filmes noir: ambientação noturna nas ruas e em bares e apartamentos; diálogos rápidos e cortantes; a femme fatale que instiga seu amante ao confronto; o belíssimo contraste de sombras e luzes e, claro, a violência latente em pontos certeiros da trama. Um filme de baixo orçamento, bem ao estilo dos filmes B americanos que foram consagrados pelas críticos da Cahiers do Cinema e se transformaram em cults.
Johnny Gunman (EUA, 1957), de Art Ford. Com Martin E. Brooks (Johnny G.), Johnny Seven (Allie), Carrie Radisson (Mimi), Nick Rossi (Lou Caddy).
O premiado artista chinês Ai Weiwei compôs um painel impactante e doloroso sobre a situação de refugiados espalhados pelo mundo. Durante um ano, o diretor e sua equipe filmaram o cotidiano de 40 campos de refugiados, em 23 países, entre eles: Líbano, Quênia, Bangladesh, a fronteira entre o México e os Estados Unidos.
“Não é apenas um problema político, mas uma questão humanitária e moral”, afirmou o diretor. As imagens do documentário, com uma edição primorosa, retratam o lado humano dos refugiados: o cuidado que eles têm uns com os outros, a luta pela sobrevivência em situações muitas vezes precárias, o sofrimento pela indefinição das condições dos refugiados de apátridas.
As imagens são acompanhadas de informações de estarrecer, por exemplo, só no Iraque, quatros milhões de pessoas já abandonaram suas casas desde os anos 80; 56 mil refugiados sírios, iraquianos e iranianos cruzam a Grécia toda semana. O documentário é muito mais do que uma denúncia, é uma potente declaração humanitária que deveria ecoar fundo nas nações que fecham os olhos diante dessa escravidão moderna.
Human flow: não existe lar se não há para onde ir (Human flow, Alemanha/EUA, 2017), de Ai Weiwei.
O diretor Ricardo Mehedff inspirou-se em fatos reais para compor um retrato claustrofóbico da justiça brasileira. O Juiz Gustavo Ferreira está trancafiado no Fórum de Belo Horizonte, protegido por agentes de segurança. Sua esposa e filho se mudaram para Buenos Aires. O juiz é o responsável por um caso judicial que envolve um senador da república. Por questões de segurança, a escolta policial do juiz não deixa que ele saia do Fórum e controla até mesmo os casos que ele vai analisar em seus dias de trabalho.
O suspense da trama se evidencia em detalhes como o apagar de luzes dos ambientes, passos que se escutam, o bater de portas, um cruzamento de olhares nos corredores do tribunal. O ponto forte do filme é a claustrofobia que transparece no juiz, sentenciado à reclusão, dormindo, comendo, vivendo em seu minúsculo gabinete. As opções estéticas e de linguagem durante a trama evidenciam o medo e o desespero do juiz ao se sentir como muitos daqueles que cumprem penas em prisões, após serem julgados por ele.
Foro íntimo (Brasil, 2017), de Ricardo Mehedff. Com Gustavo Werneck (Juiz Gustavo Ferreira), Jefferson da Fonseca (Agente Fontes), Beatriz França (Bia), Léo Quintão (Promotor Donato).
O último filme de Luis Buñuel é uma perturbadora incursão pelos desejos carnais humanos. Mathieu, um francês rico de meia-idade, representante da rígida sociedade patriarcal e do conservadorismo masculino, se apaixona por sua camareira de 19 anos. Conchita toma as rédeas do relacionamento, manipulando o amante, praticando um subversivo jogo sexual em benefício de seus interesses.
O próprio Mathieu conta a história de seu relacionamento com Conchita, durante uma viagem de trem, a dois passageiros, que se sentem mais e mais intrigados pelo desfecho do caso amoroso, marcado por sexo, agressões e provocações mútuas. O filme inclui uma ousada experimentação de Luís Buñuel: Conchita é interpretada por duas atrizes, uma loira, a outra morena, dubladas pela mesma voz, confundindo o espectador.
“Foi provavelmente em seu último filme, Esse obscuro objeto do desejo, feito em 1977, que ele (Buñuel) conseguiu sua mais assombrosa façanha de prestidigitação. Enquanto escrevíamos o roteiro, consideramos a hipótese de dar o papel da jovem ardilosa (Conchita) a duas atrizes diferentes, alternadamente, sem aviso, sem comunicação e sem dar importância ao fato. Sentíamos que certas cenas se adaptavam melhor a uma mulher elegante e um tanto distante, enquanto outras pareciam ter sido escritas para uma atriz menos sofisticada, mais franca – e capaz de dançar o flamenco.” – Jean-Claude Carríére
A estratégia narrativa faz com o que o espectador não perceba a alternância das atrizes, pois elas trocam de papéis até mesmo durante uma caminhada pelas ruas, a continuidade discursiva manipulando o espectador: em determinada cena, Mathieu e Conchita-loira estão entrando pela porta da casa, do lado de dentro a Conchita-morena assume a sequência.
Em outro momento, quando Conchita parece que vai se entregar a Mathieu, as duas atrizes alternam entre a entrada e a saída do banheiro, quando Conchita se prepara para o ato.
“Nessa sequência, percebe-se a função específica de cada uma das atrizes – divisão de personalidade de uma única mulher entre seu lado mais ardente e seu lado mais frio. Angela Molina interpreta, na maioria das vezes, os momentos mais ousados de Conchita – como no apartamento, quando se despe em frente a Mathieu, ou quando dança flamenco nua para os japoneses, ou faz amor com El Morenito. Carole Bouquet interpreta os momentos em que Conchita se faz de distante e o repudia – embora ambas Conchitas (loira ou morena) sejam igualmente cruéis e sádicas com Mathieu.” – Erika Savernini
Esse obscuro objeto do desejo (Cet obscur objet du désir, França/Espanha, 1977), de Luis Buñuel. Com Fernando Rey (Mathieu Faber), Carole Bouquet (Conchita), Ângela Molina (Conchita).
Referência: Índices de um cinema de poesia. Pier Paolo Pasolini, Luis Buñuel e Krzysztof Kieslowski. Erika Savernini. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004
Gaspar Noé faz uma alucinante incursão pelo mundo metafísico, abordando a pós-morte e a encarnação. Oscar é um jovem traficante de drogas que vive em Tóquio, junto com sua irmã Linda, streaper de uma boate. Seus melhores amigos são Victor e Alex – que lhe apresenta um livro tibetano sobre experiências espirituais após a morte.
Oscar vai a um clube noturno, The Void, entregar drogas a Victor, mas é traído pelo amigo: a polícia o espera para prendê-lo em flagrante. Refugiando-se no banheiro, Oscar é alvejado pelos policiais.
O ponto de vista em primeira pessoa é o trunfo da película. A cãmera segue o olhar de Oscar pelo submundo da Tóquio noturna, regada a sexo, bebidas e drogas, esteticamente marcada pelas infindáveis luzes estroboscópicas, o neon agressivo da cidade.
Após a morte, o espírito de Oscar vagueia pela cidade em longos planos gerais, a famosa câmera fantasma dos primórdios do cinema. O espírito espreita, entra na intimidade de seus entes queridos, sem julgamentos, apenas um observador atento à procura de seu destino.
Enter The Void: Viagem alucinante (França, 2009), de Gaspar Noé. Com Nathaniel Brown (Oscar), Paz de la Huerta (Linda), Cyril Roy (Alex), Olly Alexander (Victor), Masato Tanno (Mario).
Lettering avisa, na abertura, que a trama é inspirada em fatos reais. Logo após, uma série de imagens em planos fechados apresentam ao público vinte personagens, dançarinos, que vão se reunir em um internato no meio da floresta gelada, para um ensaio de três dias.
Corta para o galpão onde acontecem os ensaios. Após um dos ensaios, acontece uma festa regada a bebidas e drogas. Passo a passo, os dançarinos se comportam de forma alucinada, agressiva, cada um revelando desejos e instintos incontroláveis. Aparentemente, alguém colocou um tipo de droga na bebida servida na festa.
O polêmico e ousado diretor Gaspar Noé usa desse ato comum, no Brasil conhecido como “Boa noite Cinderela”, para compor um retrato insano, agressivo, erótico, quase repulsivo, desse grupo de jovens enclausurados. A montagem do filme usa de tomadas longas, planos-sequências, travellings desordenados.
Em Clímax, Gaspar Noé não precisou recorrer a um dos seus elementos fílmicos favoritos: filmagem de cenas de sexo explícitas. A insanidade que toma conta dos dançarinos e a própria insanidade da linguagem bastam para provocar o espectador.
Tony é diretor de cinema e sua namorada Chris, roteirista. Eles desembarcam na Ilha Faro, onde Ingmar Bergman fez alguns de seus importantes filmes. A ilha é um ponto turístico associado a Bergman: casas e praias que serviram de locação, a casa de Bergman, uma associação que promove debates após a exibição de filmes do famoso cineasta sueco.
A trama de A ilha de Bergman segue o processo criativo do casal de cineastas enquanto perambulam pela ilha. Tony é um diretor famoso, seguro de seu trabalho, Chris uma roteirista em crise que não consegue desenvolver seu novo projeto.
A virada da trama acontece quando Chris conta ao namorado a ideia de seu filme. A metalinguagem toma conta, um filme dentro do filme, como duas realidades paralelas na ilha, trazendo à tona revelações e dramas do passado da roteirista. A diretora Mia Hansen-Love aproveita do clima bucólico e intimista da ilha, como se o cinema de Bergman ainda pairasse ali, para compor duas histórias de amor ternas, sem melodrama, embaraçando realidade e ficção.
A ilha de Bergman (França, 2021), de Mia Hansen-Love. Com Vicky Krieps (Chris), Tim Roth (Tony), Mia Wasikowska (Amy), Anders Danielsen Lie (Joseph).