Licorice pizza

Licorice pizza (EUA, 2021), de Paul Thomas Anderson.

Los Angeles, início dos anos 70. Gary Valentine, 15 anos, é confundido com um assassino e levado para a delegacia. Alana Kane, 25 anos, corre atrás da viatura. Uma testemunha do crime não reconhece Gary e ele é rapidamente liberado. Alana chega esbaforida à porta da delegacia, os dois se olham pela porta de vidro. Gary sai, os dois se abraçam e começam a correr pelas ruas de Los Angeles, como se estivessem fugindo. A câmera em travelling acompanha os jovens, cabelos esvoaçando, os sorrisos, os semblantes, os olhares que trocam, correm em liberdade, talvez apaixonados, talvez apenas sentindo a sensação da juventude.

A narrativa despretensiosa da obra de Paul Thomas Anderson, indicado ao Oscar de Melhor Filme, acompanha a jornada de Gary e Alana na cidade dos sonhos. Gary é um aspirante a ator, mas como não tem sucesso, começa um negócio de venda de colchões de água. Alana não tem pretensões nenhuma, segue Gary em seu negócio e recusa qualquer tipo de relacionamento com o garoto dez anos mais novo do  que ela. 

A corrida dos dois, que se repete quando eles fogem de um negócio atrapalhado, é simbólica: são os anos 70, os sonhos da juventude se desvanecem na sociedade movida pelo consumo, mas é preciso continuar, soltos, de mãos dadas, sorrindo para a vida. Gary Hoffman, filho de Philip Hoffman, e Alana Haim, cantora da banda Haim, estão encantadores durante a jornada pontuada por situações cômicas, relacionamentos desastrosos (atenção para a participação de Sean Penn, como William Holden, e Bradley Cooper, como o produtor Jon Peters), e uma bela trilha sonora.

O final dessa corrida? Fica por conta do olhar e da imaginação do espectador, principalmente de quem viveu jovem assim nos anos 70. 

Los huesos

Los huesos (Chile, 2021), de Cristóbal León e Joaquín Cociña. 

No início do século XX, uma jovem invoca a ajuda de espíritos para trazer dois cadáveres de volta à vida. Os ressucitados são Diego Portales, um dos responsáveis pela constituição de 1833 que consolidou o Chile como uma república autoritária, privilegiando as altas classes sociais; e Jaime Guzmán, conselheiro político próximo do ditador Augusto Pinochet.  A narrativa mescla humor negro, com fortes críticas políticas e sociais sobre a história e a realidade atual do Chile. 

Segundo os realizadores, a ideia do filme partiu como uma crítica às crises sociais chilenas, evoluindo para um filme de animação farsesco, colocando o Chile como um dos inventores da animação em stop motion.

“Um dos pontos de partida foi que estávamos no meio de uma revolta social no Chile em 2019. Chamamos isso de “Estallido Social”, que significa explosão social. Herdamos o sistema político de uma ditadura. A diferença entre pobres e ricos é grande. É um sistema muito injusto. Então, esse foi o contexto em que começamos a pensar sobre esta produção. Pegamos duas figuras da história chilena, uma do século XIX e outra do século XX. Ambas eram defensoras da oligarquia. Queríamos nos livrar desses líderes de alguma forma e libertar o Chile dessa opressão. Não que estejamos nos levando tão a sério. Não é como se achássemos que nosso filme fosse mudar alguma coisa.” – Cristóbal León

Joaquin Cocina comenta que o outro contexto era a história do cinema, principalmente o primeiro cinema, referenciado por Georges Méliès e os Irmãos Lumiére: “Precisamos criar uma mente criativa falsa por trás do filme que não seja a nossa. Isso nos dá mais liberdade e distanciamento. Também nos interessamos pelo cinema antigo. No início do século XX, havia uma criatividade incrível. Havia Georges Méliès, um mágico que fazia filmes de fantasia; depois, havia uma abordagem mais documental, dos irmãos Lumière. Duas correntes diferentes. Estamos tentando abordar projetos pensando naqueles primeiros anos. Com Los Huesos, a ideia é muito crua. Estamos fingindo que estamos criando o primeiro filme de animação. Achamos engraçado imaginar que o Chile foi o berço da animação. Depois, pensamos nos primeiros filmes de [Ladislas] Starewicz, feitos com cadáveres de animais e insetos. Achamos lindos. Então, imaginamos que estávamos animando cadáveres no início do século XXI. Achamos isso engraçado.”

O resultado é um filme deslumbrante, com estética do cinema mudo, remetendo às primeiras experimentações na área da animação. “Nós animamos apenas na câmera. Não usamos nenhum software. Eu adoro aquela sala escura da câmera, onde você nunca sabe como vai ficar. Uma câmera de 16 mm é radical porque você não sabe o que está acontecendo. Gostamos de acidentes, de trazer erros para o processo. Eu gostava do mistério de não saber o que sairia da câmera. Também evitamos apressar os cortes. No cinema antigo, as cenas eram mais longas e muitas vezes se prolongavam.” – Acesse a entrevista completa dos realizadores em Cartoon Brew. 

A garota do capim limão

A garota do capim limão (Lemongrass girl, Tailândia, 2021), de Pom Bunsermvicha.

Uma forte chuva ameaça paralisar as filmagens em um set montado na região campestre. O diretor do filme pede a May (Primrin Puarat), uma das jovens da equipe, para plantar uma muda específica de capim-limão. Segundo uma superstição da Tailândia, uma virgem pode impedir a chuva, desde que ela siga algumas condições, como plantar em céu aberto a muda de cabeça para baixo.

Pom Busnsermivicha insere nesta narrativa simples críticas ao conservadorismo, ao sexismo ainda presente na sociedade tailandesa. É também um alerta sobre o domínio masculino no setor audiovisual, onde as mulheres são relegadas à funções de segundo plano. May, a produtora assistente, acata a ordem e se vê enredada em situações que vão desde a procura pela muda até encarar o desafio de seguir a tradição e plantá-la. 

A felicidade do motociclista não cabe em seu traje

A felicidade do motociclista não cabe em seu traje (Al motociclista no le cabe la felicidad en el traje, México, 2021), de Gabriel Herrera Torres.

O curta do diretor mexicano Gabriel Herrera Torres faz uma releitura da colonização espanhola na América. Um jovem motociclista (David Illescas) veste seu belo traje, de cores extravagantes, e se sente imponente e orgulhoso, dando voltas em círculo com sua moto. O cenário é a selva, com uma pequena barraca onde seus amigos veem deslumbrados a encenação. À medida que circula, o jovem, que se recusa a emprestar a moto aos amigos, se sente mais e mais bonito, com a certeza que só ele e sua potente motocicleta podem dominar a selva. 

Céu de agosto

Céu de agosto (Brasil, 2021), de Jasmin Tenucci. 

Incêndios cobrem o horizonte. É agosto, Lúcia (Badu Morais), uma jovem enfermeira, está grávida. Em uma festa, ela ouve o som lamentoso de um pássaro que, logo a seguir, cai morto diante dela. O sinal de mau agouro a coloca em alerta e, à medida que consulta médicos, frequenta uma igreja evangélica, descobre que algo pode estar errado em sua gravidez. A narrativa segue Lùcia em sua jornada de entendimento de sua gravidez tardia e a atração que ela sente por uma amiga, também frequentadora da igreja da comunidade. 

A roteirista e diretora Jasmin Tenucci diz que teve a inspiração para o filme em um dia que nuvens de fumaça escureçam a cidade de São Paulo. O curta-metragem recebeu vários prêmios em 2021, entre eles a Menção Especial no Festival de Cannes. 

Elenco: Badu Morais, Lilian Regina, Luci Pereira, Ernani Sanches. 

A felicidade das coisas

A felicidade das coisas (Brasil, 2021), de Thais Fujinaga, foi feito em parceria com a cultuada produtora Filmes de Plástico e foi escolhido como o melhor longa de estreia na Mostra de Cinema de São Paulo. Paula (Patricia Savay) está passando a temporada de férias com sua mãe e seus dois filhos (ela está grávida do terceiro filho) em uma cidade litorânea de São Paulo. Ela aproveita a estada para terminar a piscina da casa praiana, um sonho da família ou melhor, um sonho de Paula. 

Esse pequeno e complexo desejo de muitas famílias de classe média e classe média baixa brasileiras é o mote que deflagra uma série de conflitos familiares. A piscina, claro, nunca fica pronta por questões econômicas, o pai ausente não cobre os cheques e atrasa o pagamento dos trabalhadores. 

O grande conflito gira em torno das relações entre Paula e seus filhos, principalmente o adolescente Gustavo (Messias Góis) que está em sua fase rebelde, em busca de libertação das amarras, e se envolve com um grupo de adolescentes da cidade.  

A felicidade das coisas traz muito das memórias afetivas da diretora Thaís Fujinaga. A locação é em Caraguatatuba, litoral norte de São Paulo, no Morro do Algodão (bairro formado por casas de praia e um clube de classe média alta), onde a diretora passou vários verões durante os anos 80 e 90. Segundo Thaís “Era uma dinâmica de certa segregação: quem se hospedava no clube não se relacionava com a cidade e muito menos com o bairro. Ao longo dos anos, fiquei circulando dentro e fora daquele lugar e veio daí minha primeira inspiração. Queria explorar esse espaço e a relação de ter ou não acesso a certas coisas.” – Mulher no Cinema

Um outro mundo

Phillippe é um executivo de sucesso de uma fábrica em uma cidade da França – controlada por uma corporação multinacional. A crise que se anuncia exige de Philippe e seus comandados corte de custos na folha de pagamento, acarretando um planejamento de demissões. Os funcionários se mobilizam e exigem de Phillippe clareza nos boatos que circulam entre eles. 

O diretor Stéphane Brizé retoma a parceria com Vincent Lindon, iniciada no ótimo filme O valor de um homem (2015). O tema de Um outro mundo também remete ao filme de 2015: as relações de trabalho afetadas pela crise econômica que provoca disputas pessoais e a negação de valores éticos e morais nos ambientes de trabalho. 

Em uma cena sintomática, a líder dos operários cobra de Philippe sinceridade sobre o que está acontecendo na empresa. A resposta do executivo provoca o dilema ético que se estende pela narrativa, perpassando também pelas relações pessoais de Philippe com sua esposa e filho. 

Um outro mundo (França, 2021), de Stéphane Brizé. Com Vincent Lindon (Phillippe), Sandrine Kiberlain (Anne), Anthony Bajon (Lucas), Marie Drucker (Claire).

Sexual drive

Sexual drive (Japão, 2021), de Kota Yoshida.O filme é composto por três episódios ligados por dois temas comuns: a comida e um estranho personagem, Kurita (Tateto Serizawa), que serve como catalisador dos desejos eróticos dos personagens. 

No primeiro episódio, o jovem Enatsu está sozinho em casa, sua esposa é enfermeira. Chamado à porta, ele recebe a visita de Turita, um estranho e maltrapilho deficiente físico. Turita revela ser amante da mulher do jovem. Natto, prato preferido da mulher, guia a história contada pelo homem, com altas voltagens de erotismo. 

No segundo episódio, Akano é uma jovem que sofre com a síndrome do pânico. Quando ela finalmente resolve sair sozinha de carro, para comprar os ingredientes para preparar Mapo, atropela um homem e o coloca em seu carro. Turita revela a ela ser o homem que a assediava na escola e segue-se um diálogo de puro exercício sexual, incluindo sadomasoquismo, que aumenta gradativamente o pânico da jovem motorista. 

Por fim, o último episódio não traz a presença física de Turita, Sua perversa e insinuante voz é ouvida pelo telefone por Ikeyama, em um restaurante que serve lámen. Casado, Ikeyama mantém um caso com Momoka, também casada. Cada vez mais perturbado, Ikeyama explode em reações de desespero e agressividade no silencioso balcão do restaurante, todos estão absortos em seus lámens. 

O grande trunfo de Sexual drive é não mostrar nem uma única cena de sexo. Tudo fica por conta da imaginação, tanto dos personagens a quem Turita provoca com seus relatos ousados e perversos, quanto dos espectadores. Anseio por comida e sexo, duas necessidades naturais do ser humano que se transformam em desejos obsessivos e perturbadores.   

Outside noise

Em Outside noise o cineasta independente Ted Fendt reflete, de certa fora,  sobre os isolamentos sociais provocados pela pandemia. Daniela (as personagens usam seus próprios nomes no filme) sofre de insônia. Vive sozinha em um apartamento em Viena, sua única diversão é caminhar sozinha pelos bairros e vielas da cidade. Recebe a visita de suas duas amigas Mia e Natascha, vindas de Berlim, e as três passam o tempo deitadas, lendo, conversando, no pequeno apartamento. Dias depois, as três embarcam para Berlim, onde continuam essa troca de relacionamentos movida ao cotidiano de jovens sem muito há fazer, apenas deixar o tempo passar. 

Ted Fendt realizou esse filme curto, cerca de 60 minutos de duração, como uma câmera em 16 mm, raridade no cinema contemporâneo já completamente entregue à tecnologia digital. O foco está nas três personagens e em suas interações com os ambientes, cuja estética sonora e visual é minimalista: alguns ruídos ambientais, a luz fria nas cenas externas, imagens simples e bonitas dos ambientes fechados, quase como se tudo acompanhasse as amigas sem interferir, sem chamar a atenção. Uma bela e reflexiva obra sobre amizades simples e rotineiras. 

Outside noise (Alemanha, 2021), de Ted Fendt. Com Daniela Zahlner, Mia Sellmann e Natascha Manthe.

Os filhos de Deus

Os filhos de Deus (Los niños de Dios, Argentina, 2021), de Martín Farina.

O título do filme é o mesmo de uma seita religiosa fundada na Califórnia em 1968, por David Berg. A seita também ficou conhecida como Família Internacional, Família Missionária Cristã e Família do Amor. A organização se esfacelou em 1978 quando vieram à tona casos relacionadas à prosituição, incesto e pedofilia dentro da comunidade. 

O documentário de Martin Farina centra as lentes em dois irmãos, Francisco e Sol, agora adultos, que foram inseridos na seita na adolescência pela própria mãe. Uma cena sintomática do documentário mostra a mãe, Silvia Markus, admitindo, em prantos, o erro que cometeu quando levou os filhos para a seita. Evidência de um passado nebuloso, que volta para Francisco e Sol por meio de lembranças ora lúdicas, ora dolorosas, revelando o que insiste em ficar escondido. 

Os filhos de Deus é mais um potente documentário lançado recentemente que denuncia, mas não julga, a cruel realidade dos bastidores de seitas religiosas movidas pelo fanatismo