A cabra (The goat, EUA, 1921), de Buster Keaton e Malcolm St. Clair.
O plot twist do filme é o típico acaso que movimentou as comédias do cinema mudo. Buster Keaton passa em frente a janela de uma cadeia. Ela pára e olha para dentro, no momento em que um presidiário está sendo fotografado. Um erro de foco enquadra Buster Keaton por trás das grades da janela e não o criminoso. Quando o criminoso foge, cartazes são espalhados pela cidade com a foto de Buster Keaton e a inscrição: “Procurado vivo ou morto.” O título do filme, “the goat”, faz alusão a uma gíria utilizada quando alguém se tornava o bode expiatório.
A partir dessa solução visual, o pobre e maltrapilho personagem perambula pelas ruas da cidade provocando uma série de mal entendidos que resultam em algumas das gags mais divertidas da era das comédias mudas. A todo momento ele é identificado como o criminoso foragido e, sem entender nada, começa a ser perseguido, primeiro por três policiais, em uma série de encontros e desencontros hilários; depois, pelo chefe de polícia local – mais uma vez, a genialidade de Buster Keaton em trabalhar com esses acasos do cotidiano, rende um dos finais mais engraçados destes adoráveis filmes curtos.
O solar dos prazeres noturnos (Brasil, 2024), de Matheus Marchetti.
O filme abre com plano fechado em Rodrigo Escher (Bruno Germano) pintando um retrato. O modelo é um jovem jornalista, interessado em escrever uma história sobre Rodrigo, ex-ator mirim de sucesso que abandonou a profissão após um surto psicótico no set de um dos programas.
O próprio Rodrigo conta sua história, assumindo seus problemas psicológicos como uma herança da família. Seus antepassados foram sádicos assassinos, sua mãe sofre com delírios e alucinações, assim como sua irmã. Todos vivem enclausurados em uma suntuosa casa, onde os surtos se convertem em pesadelos de filmes de horror.
Referências a contos de Edgar Allan Poe compõem a narrativa. As cenas de sadismo remetem ao universo sedutor dessa histórias do gênero, mesclando sangue e sexo em ousadas cenas do universo LGBTQ+. O final em aberto é outra demonstração que o cinema brasileiro contemporâneo assumiu as convenções estéticas e narrativas do gênero, com a ousadia erótica que marca nosso cinema desde a pornochanchada e o terrir de Ivan Cardoso e José Mojica Marins.
Elenco: Com Bruno Germano, Anna Preto, Tuna Dwek, Natan Cardoso,Natt Mazzoni, Vinícius Précoma.
Pussy (Cipka, Polônia, 2016), de Renata Gasiorowska.
Uma jovem está em sua casa sozinha, à noite. Ela começa a se acariciar, entra na banheira e continua se entregando ao prazer. Uma reviravolta surreal, à princípio assustadora para a jovem, transforma sua busca em um auto conhecimento dos seus desejos e de seu corpo de forma livre, selvagem, rebelde.
Os trabalhos de animação da diretora polonesa Renata Gasiorowska, incluindo filmes e clipes, são sempre muito bem recebidos pela crítica em diversos festivais de cinema. Pussy foi premiado no Festival Internacional de Curta-Metragem de Clermont-Ferrand. A narrativa é ousada, com cenas e insinuações provocativas em relação ao prazer feminino. A passagem da personagem do mundo real para o imaginário, o surrealismo, é um convite à plena libertação.
Quando o tempo cair (Brasil 2006), de Selton Mello.
Em seu primeiro filme como diretor, um drama melancólico realizado em 16mm, Selton Mello fez uma aposta ousada: escalou como protagonista Jorge Loredo, mais conhecido pelo eterno Zé Bonitinho.
Loredo interpreta Ivan, um homem idoso, já aposentado, que mora em um pequeno apartamento junto com o filho e o neto. O filho está desempregado e sofre com a depressão, motivo que leva Ivan a procurar emprego para o sustento da família.
O curta-metragem aborda questões importantes e crueis da sociedade brasileira como o etarismo no mercado de trabalho e a depressão entre os jovens. Ivan enfrenta isso com resignação e otimismo, como quem sabe que não tem o que fazer diante dos problemas que o acometem, mas não perde a esperança e o olhar carinhoso para a vida, como na cena final, contemplando sua família na praça.
Minha contribuição (Mi aporte, Cuba, 1969), de Sara Gómez.
O início do documentário segue um tom institucional, com uma citação de Che Guevara: “O proletariado não tem gênero, é a união de todos os homens e mulheres que, em todos os trabalhos do país, lutam conscientemente por um bem comum.” Os créditos são acompanhados por ilustrações de campanhas enaltecendo o trabalho das mulheres e uma música patriótica.
O estilo jornalístico define a estrutura a seguir. Uma repórter entrevista um grupo de trabalhadoras na usina de açúcar Camilo Cienfuegos. “Aqui nós podemos ver o papel das mulheres na produção, fazendo trabalhos que antes eram realizados apenas por homens e que, através do processo revolucionário, agora foram herdados pelas mulheres.”
O documentário atendeu a uma encomenda da Federação das Mulheres Cubanas (FMC) como forma de destacar a contribuição das mulheres para a colheita da cana-de-açúcar. O financiamento ficou por conta do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, assim como os outros documentários de Sara Gómez. A relação institucional com os princípios da revolução cubana fica clara, pois são dois institutos com ligações políticas.
No entanto, é um filme de Sara Gómez. A partir da apresentação institucional, a diretora promove uma reflexão sobre as condições de trabalho das mulheres, destacando a necessidade de políticas específicas para que elas possam ocupar os postos conciliando suas prioridades naturais, como a maternidade. O depoimento de um trabalhador masculino deixa claro o conflito de gêneros nas relações de trabalho.
“Aqui nós temos problemas, às vezes, bem sérios. Já que as companheiras não tem experiência em trabalhos pesados, trabalhos que os homens costumam fazer, elas, às vezes, não se comportam como deveriam. Em alguns casos, elas não vêm trabalhar e muitas vezes exploram seus colegas de trabalho infelizes perto delas, que, por causa do paternalismo, fazem seu trabalho e também parte do trabalho das mulheres. Às vezes ela não aguentam o esforço necessário para realizar o trabalho e aí os homens ajudam elas. A questão da falta ao trabalho ocorre por vários motivos. Um dos problemas, pode-se dizer que a maioria deles, estão relacionados com problemas com os filhos em casa, há problemas com gravidez. Desafios relacionados à falta de tempo para realizar as tarefas de casa.”
A fala do operário deixa evidente que, naqueles primeiros anos da revolução, o trabalho das mulheres era incentivado e necessário, mas ainda não existiam legislações específicas para protegê-las, principalmente no tocante à maternidade. O próprio trabalhador completa: “Nós sabemos que num futuro não tão distante esses problemas serão resolvidos com creches, e tal, mas, no momento, esses problemas existem e estamos tendo dificuldades de lidar.
A partir daí, a câmera de Sara Gómez se dedica a dar voz às mulheres que sofrem com esse tipo de discriminação e falto de apoio governamental. A diretora acompanha o trabalho da comissão formada para supervisionar e buscar soluções para as mulheres que deixam o trabalho. A comissão visita as mulheres para descobrir as causas do “abandono”.
Uma das trabalhadoras abre a porta e debate com a supervisora as possibilidade para retornar ao trabalho.”Eu disse aos camaradas para verem se podiam colocar meu filho na escola. Desse jeito eu posso ir trabalhar cedo e não chegar atrasada e não ter problemas de falta. Na verdade, eu preciso trabalhar. Preciso alimentar três crianças, imagine só. Mas também quero que elas estejam num lugar onde possam aprender. Como pode ver, até conseguir a escola, não posso trabalhar.”
Os últimos dez minutos do documentário mostram um grupo de mulheres que estavam assistindo ao filme em uma sala de projeção. “Um relatório sobre um cine-debate” indica a estratégia: analisar e debater os problemas apresentados. As debatedoras, possivelmente, especialistas em questões psicológicas e sociológicas tecem fortes críticas ao trabalho de apoio oferecido até aquele momento. “Escute, eu estava ouvindo a Lucia (supervisora da comissão). Na verdade, está ferindo outras mulheres. Ela não está ajudando de um ponto de vista social. Como posso dizer… e fisicamente. Ela é uma mulher qualificada, ela é intelectual, mas o tempo em que uma mulher intelectual era intelectual e nada mais, acabou. Em vez de ajudar outra mulher que claramente se sente sobrecarregada, a única solução para ela foi: ‘bem, no meu caso, não vou me casar, por causa disso e daquilo.’”
A estrutura definida pela rebelde Sara Gómez para Minha contribuição, passando da apresentação institucional para o conflito, para o debate, a reflexão e a crítica, resultou em problemas com a censura. A Federação das Mulheres Cubanas impediu a circulação do documentário em Cuba e fora do país.
Ilha do tesouro(Isla del tesoro, Cuba, 1969), de Sara Gómez.
O Presídio Modelo foi construído na Ilha de Pinos em 1931, durante o regime opressor de Gerardo Machado. Em 1953, após o ataque ao Quartel Moncada, Fidel Castro, seu irmão Raul e outros revolucionários foram encarcerados no presídio. O próprio regime de Fidel Castro usou o presídio como prisão de dissidentes políticos.
O documentário de Sara Gómez faz uma incursão pela Ilha de Pinos, acompanhando a desativação e remodelação do presídio, iniciada em 1967. O documentário começa com fotos de arquivo, acompanhas de narração que indicam a ocupação da ilha por piratas, corsário e bucaneiros durante três séculos, associando a origem da colonização da ilha às velhas lendas de tesouros escondidos. As imagens históricas e cenas de trabalhadores e moradores naquela atualidade são entrecortadas por imagens da “desconstrução” do presídio. Uma grade de cela caindo marca a transição das cenas.
O olhar poético de Sara Gómez se revela na edição-clipe de trabalhadores e trabalhadoras na agricultura ao som de uma canção. Já o olhar crítico da diretora é simbólico e incisivo: as imagens leves, sensíveis da Ilha de Pinos são cortadas abruptamente para a janela de grades do presídio caindo, símbolo da repressão e violência política que imperou em ambos os regimes.
Eu vou para Santiago (Irá a Santiago, Cuba, 1964), de Sara Gómez.
“Quando a lua cheia chegar / Eu irei a Santiago de Cuba / Eu irei a Santiago / Em um carro de águas negras.”
O verso de Federico Garcia Lorca é a primeira cena do documentário, escrito à mão com tinta branca em uma parede da cidade. Uma jovem passa em frente à citação e sobe uma escadaria. Entram cenas de moradores caminhando pelas ruas da cidade, ao som de uma canção romântica.
Narração em off de Sara Gómez: “Sim, dizem que somos de uma ilha onde a terra treme e todos os mulatos têm cheiro de grama fresca. Aqui nos acostumamos com o calor bebendo suco de raiz fermentada. Nas ruas, nós temos um mercado de cor e grito dos vendedores. Do milho, a ferida. Pão, com banana da terra. Nós rimos e falamos em voz alta com agressividade e orgulho. Nossos gestos são exagerados e divertidos.”
As imagens sensíveis de pessoas, casas, pontos históricos, acompanhadas por esse texto poético, traduz o objetivo do documentário da prestigiada cineasta Sara Gómez: compor um hino de amor à cidade. A câmera na mão transitando junto com as pessoas e a música popular cubana marcam esse filme poesia, estilo que se consagrou a partir do novo cinema dos anos 60.
Eu vou para Santiago é assim, formado pela simplicidade de imagens e frases que instigam a contemplação do espectador: “Na minha ilha, a sesta é um balanço de vime e madeira.”
Vueltabajo, localizada no oeste de Cuba, província de Pinar del Rio, é famosa mundialmente por ser a principal fonte do tabaco utilizado na produção dos famosos charutos cubanos de alta qualidade. O documentário Excursão a Vueltabajo (Excursión a Vueltabajo, Cuba, 1965), de Sara Gómez, é composto por fotos de arquivos dos primeiros colonizadores, ilustrações e cenas dos campos agrícolas, das ruas no centro urbano, de trabalhadores cultivando as terras.
A breve história do desenvolvimento da indústria do tabaco promove também uma reflexão sobre o conflito entre as técnicas rudimentares de agricultura, como o arado, e a maquinização adotada a partir da revolução cubana. “Pensando em todas essas coisas, em Pinar del Rio e no tabaco, cheguei a uma fazenda em Vueltabajo. Eu vi os campos de tabaco, a décima e o guajiro de origem nas Ilhas Canárias. Mas também uma máquina que faz o arado, fertiliza, molha e semeia, enquanto poupa o trabalho de 30 homens.”
E… nós temos sabor (Y… nos tenemos sabor, Cuba, 1967), de Sara Gómez.
O filme abre com uma informação em lettering sobre a impossibilidade de mostrar todos os instrumentos cubanos no documentário. “Nós nos limitamos aos de danças populares.” O guia da narrativa é Alberto Zayas, compositor e cantor cubano de rumba, considerado um dos mais importantes músicos deste gênero peculiar da ilha.
Os depoimentos de Zaya, mostrando e explicando a origem e funcionalidade dos instrumentos musicais, alternam-se com cenas de músicos em diversas manifestações: durante gravações em estúdios, em festas populares nas ruas, apresentando-se em palcos, nos quintais das casa… Narração em off de Sara Gomez também acompanha as imagens: “Os trovadores, acompanhados de violões, a herança espanhola que aparece em toda a nossa música tradicional, utilizam a clave como um elemento rítmico e às vezes como uma dupla de percussão com claves e colheres.”
A importância histórica e cultural do documentário está na estrutura que alterna as sensíveis cenas de músicos, a maioria desconhecidos, em comoventes interpretações, com os depoimentos, quase didáticos, de Alberto Zaya: “As claves, dois pedaços de cabo de vassoura. Mas, dão um sabor delicioso. Essas claves se tornaram muito boas. Elas são usadas desde o século nove. Mas depois vieram as melhores, para o tipo de guaracha que eles usam no oriente. Depois usaram elas para son. Para o son e guaguancó. Mas perceba, todos os instrumentos cubanos, os primitivos, os instrumentos mulatos, todos eles são em pares, fêmea e macho. Duas claves, duas maracas, um par de bongôs…”
Uma ilha para Miguel (Una isla para Miguel, Cuba, 1968), de Sara Gómez
Em determinado momento do documentário, a câmera está fixa, em meio primeiro plano, no rosto de um adolescente: “Nossa escola, Antonio Briones Montoto, é um centro de estudos técnicos onde esperamos conseguir resolver as necessidades de nosso país a respeito de especialistas em cítricos. Devemos formar cerca de 400 camaradas nesta função. Através de treinamento abrangente, nós desenvolvemos um trabalho que consiste no seguinte: coordenar o estudo, o trabalho e a defesa. Nesse caso, nós relacionamos estudos acadêmicos a matérias técnicas e às matérias voltadas para elevar o nível cultural do corpo estudantil. A respeito do trabalho, nosso corpo, ou seja, os estudantes, trabalham quatro horas e meia todo dia, de 7h30 a 11h30 da manhã. Nesse período, eles completam as tarefas relacionadas aos estudos.”
O depoimento segue um tom formal de um jovem representante do partido e dos ideais da revolução. As imagens que acompanham este e outros depoimentos refletem a sensibilidade desta proposta, mostrando grupos de jovens, estudantes, trabalhadores, em seus afazeres cotidianos, sempre com leveza e alegria.
O contraste é Miguel, jovem que foi enviado para a Ilha dos Pinos, onde o programa de educação e formação técnica se desenvolve. Ele é um menino rebelde, na infância provocou problemas para sua família formada por nove irmãos e passou por atritos violentos com seu pai. Logo nos primeiros dias na ilha, Miguel comparece ao comitê devido a um gesto rebelde, é julgado e punido.
Uma ilha para Miguel faz parte da trilogia de documentários de Sara Gomes sobre a Ilha dos Pinos. Os outros filmes são Na outra ilha (1968) e A ilha do tesouro (1969). A abordagem são as tentativas de programas comunitários, implantados pelo regime de Fidel Castro, com intenção de formar trabalhadores com bagagem técnica e cultural. O final de Uma ilha para Miguel deixa em aberto o futuro desses jovens. As últimas imagens mostram Miguel olhando de forma inexpressiva para a câmera. Corta para claquete batida em frente ao rosto de seu amigo que diz: “Miguel, sendo meu amigo e um homem, eu sei que ele vai se comportar bem.”