Um close, um olhar, um insert

Quem não assistiu a Da terra nascem os homens (The big country, EUA, 1958), de William Wyler, que me perdoe o spoiler. No final do filme, Gregory Peck e Jean Simmons cavalgam pela garganta da montanha até avistarem o vale, o big country. O espectador já sabe que as personagens apaixonaram-se; falta a confirmação. Durante o filme, nada disseram, nem um beijo, tudo estava por conta do olhar. Os dois param na entrada do vale e, antes de descerem, se olham. Primeiro, um close no rosto de Gregory Peck, depois a câmera corta para o olhar terno, apaixonado, infinitamente belo de Jean Simmons. A revelação é um close, um olhar, a alma do cinema.

Há muito, discute-se o direito de o cinema ser linguagem. Edgar Morin narra o nascimento da linguagem cinematográfica. “O plano único e elementar do cinematográfico explodiu para dar origem a todas as combinações simbólicas possíveis (…) O plano, ao inserir-se numa cadeia de símbolos que estabelece uma verdadeira narrativa, aumenta as suas características, ao mesmo tempo concretas e abstratas. Cada um ganha sentido em relação ao precedente e vai orientar o sentido do seguinte”.

O raciocínio envolve dois conceitos específicos do cinema: decupagem e montagem. Na decupagem, definem-se os planos; na montagem, são organizados. O resultado é um conjunto de elementos visuais e verbais dotados de intensa simbologia. Por meio do close, plano mínimo do cinema, revela-se a paixão de Gregory Peck e Jean Simmons. Pier Paolo Pasolini, cineasta italiano, chegou a afirmar que o cinema é uma língua, a língua da realidade, o plano equivale ao monema e os objetos que aparecem no quadro, ao fonema. Gilles Deleuze contesta: “Na verdade, essa língua da realidade não é de modo algum uma linguagem (…) Mesmo com seus elementos verbais, esta não é uma língua nem uma linguagem. É uma massa plástica, uma matéria a-significante e a-sintática, matéria não lingüisticamente formada, embora não seja amorfa e seja formada semiótica, estética e pragmaticamente”.

O tema é polêmico e poderia ser estendido em opiniões de cineastas e teóricos. Não cabe aqui discutir se o cinema é linguagem. O trabalho é breve e tem pretensões modestas, mostrar a especificidade do insert (introdução de um plano de detalhe, um close, em determinados momentos da narrativa), uma técnica essencialmente cinematográfica que sintetiza, com precisão, os recursos da decupagem e da montagem.

A especificidade do insert é um exemplo de como o cinema utiliza-se de técnicas de narração inigualáveis. Inúmeros outros recursos, como a profundidade de campo, cortes e efeitos de montagem, acirram a discussão sobre o cinema ser uma linguagem.

O plano aprisiona o olhar. O espectador vê o que a câmara vê. É a restrição do plano em seus variados aspectos: plano de detalhe, plano americano, plano de conjunto. No início de Cidadão Kane (Citizen Kane, EUA, 1941), vemos lábios que dizem “Rosebud”. É a última palavra de Charles Foster Kane. Corta para noticiário cinematográfico com a biografia do personagem, poderoso magnata da imprensa norte-americana. Um jornalista recebe a missão de descobrir o significado da enigmática palavra. Ele entrevista o tutor, um amigo e a segunda mulher de Kane, que nada sabem da palavra, mas vão reconstruindo a biografia do magnata. No final do filme, a surpresa: enquanto os empregados arrumam os inúmeros objetos pessoais de Kane, a câmera mostra um pequeno trenó usado por Kane quando criança. No trenó, a inscrição Rosebud. Com o uso de um insert – na última cena do filme –, o diretor Orson Welles sela a cumplicidade com o espectador e mostra toda a nostalgia da infância perdida que guiou a biografia do protagonista. Só quem está sentado na cadeira do cinema descobre o segredo.

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