História do cinema mundial

Grande parte dos livros de história do cinema se concentram nas cinematografias fortes, tradicionais, que se consolidaram logo nos primeiros anos do cinema: EUA, França, Rússia, Alemanha, Itália, países escandinavos e do leste europeu. Nestes países, nasceram importantes diretores e diretoras que dominam o repertório de obras importantes da cinematografia. É onde surgiram também os alardeados movimentos, como vanguarda russa, expressionismo alemão, impressionismo francês, neorrealismo italiano, nouvelle vague francesa, nova hollywood. O Brasil entra com destaque em publicações de autores nacionais. 

Tudo isto está no livro de Franthiesco Ballerini, História do Cinema Mundial, publicado em 2020. O mérito do livro está também no fato do autor abrir espaço para cinematografias, principalmente contemporâneas, de países que ficaram sempre à margem em outras publicações de destaque. São dedicados capítulos à cinemas da Ásia; África; Américas – incluindo países menos relevantes como Bolívia, Colômbia, Paraguai, Peru, Uruguai e Venezuela; Oceania, entre outros. As três grandes forças do cinema contemporâneo, que se apropriaram de parte do sistema produtivo americano, são tratados com mais vigor: Chinawood, Bollywood (Índia) e Nollywood (Nigéria). 

O livro traça um panorama de filmes importantes de cada região, bem como de diretores e diretoras. Ao final da cada cinematografia, lista de filmes ajuda o leitor a em termos de pesquisas, de garimpagem em busca dos títulos, pois sabe-se que são filmes de difícil acesso, com certeza não estão nos catálogos de streaming. 

Em tempo, o mais completo livro de história do cinema, assim como guia, ainda é a monumental obra, que virou a melhor série de história do cinema: 

História do Cinema mundial. Franthiesco Ballerini. São Paulo: Summus, 2020. 

O estrangeiro

O canto do cisne do aclamado diretor Satyajit Ray é um tratado filosófico e humanista sobre as relações familiares. O filme é adaptado de um conto escrito pelo próprio diretor. 

Anita Bose é casada com Sudhindra, um próspero industrial indiano. O casal tem um filho adolescente, Satyaki. A trama abre com Anita lendo para seu marido e filho a carta que acabou de receber de seu tio Mitra, desaparecido há mais de vinte anos. O tio pede que a sobrinha o receba para uma visita de uma semana. No entanto, pairam dúvidas sobre a identidade deste tio desconhecido. 

A narrativa é centrada neste núcleo de quatro personagens, tendo como cenário a casa da família Bose. Mitra se revela, pouco a pouco, um homem fascinante, de vasta cultura adquirida em suas viagens pelo mundo. O jovem Satyaki é o primeiro a acreditar que tem um tio-avô, não escondendo sua admiração pelo contador de histórias. Cabe a Mitra vencer, passo a passo, a resistência de sua sobrinha e, principalmente, do patriarca da família. 

O grande trunfo da narrativa são os diálogos intimistas e filosóficos que se transformam, muitas vezes, em longos debates sobre religião e misticismo, sobre tribos indígenas, sobre a injusta sociedade de castas indianas. Mitra é um personagem cético em relação à humanidade. Ele busca sentido para a vida estudando as tribos primitivas de várias partes do mundo. O final é terno e encantador, aponta o desprendimento necessário para se entregar aos pequenos sentimentos entre família.   

O estrangeiro (Agantuk, Índia, 1991), de Satyajit Ray. Com Utpal Dutt (Manomohan Mitra), Dipankar Dey (Sudhindra Bose), Mamata Shankar (Anita Bose), Bikram Bhattacharya (Satyaki Bose).

O dinheiro

Em seu último filme, Robert Bresson retoma princípios básicos de seu cinema, em termos narrativos e estéticos. A trama tem semelhanças com seu clássico extremo, O batedor de carteiras.

Um jovem, em Paris, pede adiantamento da mesada ao seu pai. O pedido é negado, o jovem recorre a um amigo e os dois resolvem passar adiante uma nota falsa de 500 francos. O crime se dá em uma loja de equipamentos fotográficos. No mesmo dia, o dono da loja repassa a nota como pagamento a Yvon, um bombeiro que acaba de prestar serviços na loja. 

Essa trama aparentemente simples, de uma nota falsa que circula de mão em mão na cidade, ganha contornos trágicos quando Yvon, sem saber da falcatrua, paga suas despesas em uma lanchonete com a nota. Ele é preso, julgado, perde seu emprego e, sem dinheiro, envereda pelo mundo do crime. 

Bresson aplica em O dinheiro (adaptado de um conto de Tolstoi) seu famoso radicalismo na direção de atores. Os personagens agem quase como autômatos, sem demonstrar emoções como tristeza ou raiva. Yvon aceita seu destino trágico com uma resignação fria, sua transformação em um honesto trabalhador, em um adorável pai de família, no mais cruel assassino, acontece de forma natural. A decupagem simples, direta, os cortes secos, uma imagem sucedendo à outra como fotos que passam diante de nossos olhos – estamos diante, pela derradeira vez, da genialidade simples de Robert Bresson. 

O dinheiro (L’Argent, França, 1983), de Robert Bresson. Com Christian Patey (Yvon Targe), Vincent Ristenucci (Lucien), Caroline Lang (Elise). 

O amor dos leões

Agnès Varda realizou este filme durante sua estada em Los Angeles, em 1969, centrando a narrativa em um triângulo amoroso, formado por Viva (a atriz de Andy Warhol, interpretando ela mesma), Jim e Jerry. Sexo a três, amor livre, viver os dias entre o mar, o sol e as piscinas, tudo indica o aclamado verão do amor que marcou a rebeldia juvenil dos anos 60. 

Em meio a esta utopia, a diretora insere imagens dos astros e estrelas de Hollywood: fotos, cartazes, a famosa calçada da fama, citações, segundo Viva “a pressão aqui em Hollywood é tão grande, vinda de todas aquelas pessoas mortas.”

Como pano de fundo, a própria Agnès Varda participa da trama, pois está tentando terminar um filme com a estrela Shirley Clarke, que passa por uma crise profissional e pessoal que resulta em uma overdose de remédios. 

O amor dos leões é um retrato utópico e realista (os três protagonistas vivem em frente à TV acompanhando os impactos políticos do assassinato de Rober Kennedy) do final dos anos 60, quando parece que todo a rebeldia caminha para o erro.

O amor dos leões (Lions love (…and lies), EUA, 1969), de Agnès Varda. Com Viva (Viva), James Rado (Jim), Gerome Ragni (Jerry), Shirley Clarke (Shirley).