Melô

O casal Pierre e Romaine recebem Marcel, um famoso violinista, para jantar. Em certo momento, Marcel relembra uma triste história de amor de seu passado. Romaine ouve a narração fascinada. No dia seguinte, ela vai a casa de Marcel, os dois tocam juntos uma sonata – é o início de um relacionamento amoroso que mudará o destino, de forma trágica, dos três amigos. 

Melô é uma adaptação fiel da peça de Henri Bernstein. Alain Resnais filma longos planos estáticos, centrados nos protagonistas, evita a interpretação naturalista e usa como elemento de transição as cortinas cerradas de um teatro. A experimentação de Resnais, teatro mais do que cinema, potencializa a força do texto, os belos diálogos e a música, elemento que direciona os rumos do trágico triângulo amoroso. 

Melô (França, 1986), de Alain Resnais. Com Sabine Azéma (Romaine), Fanny Ardant (Christiane), Pierre Arditi (Pierre), André Dussollier (Marcel). 

Você tem belas escadarias, sabia?

Em apenas quatro minutos, Agnès Varda faz uma bela homenagem à história do cinema. O curta usa as escadas da Cinemateca Francesa que conduzem ao Museu do Cinema. A montagem alternada intercala pessoas descendo as escadas com cenas de diversas obras filmadas em escadas. É uma sucessão de imagens que remetem à história do cinema, filmes que marcaram gerações, o fascínio irrompe em cada take. 

O curta-metragem celebrou os 50 anos da Cinemateca Francesa e, por coincidência, a escadaria tem exatamente 50 degraus. Agnès Varda recortou cenas dos seguintes filmes: Juve contre fantômas – Louis Feuillade, Pépé le moko – Julien Duvivier, O encouraçado Potemkin – Sergei Eisenstein, A imperatriz vermelha – Josef von Sternberg, Cidadão Kane – Orson Welles, Ran – Akira Kurosawa, Le coup du parapluie – Gérard Oury, O desprezo – Jean-Luc Godard, Modelos – Charles Vidor, A história de Adele H – François Truffaut. 

Você tem belas escadarias, sabia? (T’as de beaux escaliers, tu sais, França, 1986), de Agnès Varda. 

Diva: paixão perigosa

No início dos anos 80, jovens cineastas franceses realizaram alguns filmes que foram classificados, pejorativamente a princípio, como Cinéma du Look. A expressão foi cunhada pelo crítico Raphael Bassan, analisando que os filmes priorizavam o estilo em detrimento do conteúdo. Os principais expoentes dessa espécie de movimento transitório foram Jean-Jacques Beineix (Diva), Luc Besson (Metrô) e Leo Carax (Garoto conhece garota). 

Diva é o primeiro filme a apresentar as principais características do movimento. A trama acompanha o carteiro Jules, fascinado pela cantora lírica Cynthia Hawkins. Ela se recusa a gravar discos, mas Jules faz uma gravação clandestina durante um show que circula em versões piratas. Um assassinato de uma garota de programa nas ruas de Paris coloca Jules em confronto direto com uma gangue de tráfico de mulheres chefiada pelo comissário de polícia (antes de morrer, a vítima esconde uma fita cassete com revelações na moto do jovem carteiro).

O visual extravagante da película é responsável por ambientações deslumbrantes, como a garagem onde Jules mora e o reduto dos marginais Serge e Abba. A pop art está presente em grande parte da narrativa, acompanhando os personagens pelas ruas e metrôs da cidade. Preste atenção na ousada sequência de perseguição: um policial persegue Jules, primeiro pelas ruas da cidade, depois pelas estações do metrô, uma elaborada combinação de movimentos incluindo carro, moto e corridas a pé. Outro ponto de destaque da narrativa é a caricatural dupla de assassinos, sempre de óculos escuros e cigarros nas mães, exalando um charme artificial. 

Diva: paixão perigosa (Diva, França, 1981), de Jean-Jacques Beineix. Com Frédéric Andréi (Jules), Wihelmenia Fernandez (Cynthia Hawkins), Richard Bohringer (Serge), Thuy An Luu (Abba), Jacques Fabbri (Comissário Jean).

Bagdad Café

A canção I’m calling you já vale o filme. Ela entra no espectador e fica, apenas fica. No entanto, o filme tem muito mais. É uma emocionante história de perda e renascimento pessoal, movida pela relações pessoais entre duas mulheres que começam com estranheza, beiram a agressividade, passam pela compreensão até se transformarem na mais sincera amizade. 

A alemã Marianne está de férias com seu marido nos EUA. Eles se desentendem e ele a abandona em uma estrada deserta e árida. Ela caminha por um longo tempo até encontrar o Bagdad Café, restaurante e pousada de beira de estrada. É recebida pela proprietária Brenda, se hospeda e vai ficando por ali. 

Os tipos que moram e trabalham no Bagdad Café compõem um painel de personagens excêntricos, exóticos, que passam os dias entre desentendimentos e reconciliações. A transformação de Marianne começa quando ela decide organizar o local, ajudando Brenda primeiro na limpeza, depois no atendimento aos clientes, oferecendo divertidas apresentações de mágica. O que fica, no final, além da música, é essa simplicidade da vida que pode e deve ser sentida dia-a-dia através das ternas relações entre as pessoas. 

Bagdad Café (Out of Rosenheim, Alemanha, 1987), de Percy Adlon. Com Marianne Sagebrecht (Jasmin), CCH Pounder (Brenda), Jack Palance (Rudi Cox), Christine Kaufmann (Debby), Monica Calhoun (Phyllis), Darron Flagg (Salomo), George Aguilar (Cahuenga), G. Smokey Campbell (Sal). 

Dirigido por Andrei Tarkovski

O documentário foi realizado durante as filmagens de O sacrifício (1986), na Suécia. É um retrato fascinante do processo de criação e realização de um dos diretores mais autorais, intimistas, do cinema. As cenas mostram Tarkovski envolvido em todas as etapas da produção: discutindo aspectos da direção de arte, do cenário, conversando com os atores, às vezes, simulando ele mesmo cenas para expressar seu desejo na interpretação. 

As sequências das filmagens são intercaladas com depoimentos de Larissa Tarkovskaja, esposa do diretor, que lê trechos do diário do marido, de conversas do diretor em palestras que proferiu, de suas reflexões sobre o cinema e a vida, deixando claro que nos filmes do cineasta russo não existe separação entre a arte e sua vida.

“Você pergunta que relacionamento ele tinha com a casa dele. A casa era muito importante para ele. E, como  pôde ver, ele colocou nossa casa em cada um de seus filmes. O interior, a sensação, a alma de nossa casa. Não exatamente como uma fotografia. Afinal de contas, isto é arte. Ele usou outras formas e outros personagens além de nós. Mesmo assim, sua vida e sua casa estão presentes em cada filme. Sentimos muita falta de nossa casa durante os cinco anos que ficamos no ocidente. Esta foi nossa primeira casa e ele a adorava e trabalhava muito bem lá. Ele costumava desenhar sempre a casa. Ele escreveu. Estou descansando aqui há três dias, mas sinto que recuperei um ano inteiro. Agora, posso trabalhar. Mas onde há trabalho a ser feito? Em ‘O sacrifício’ ele contou a história de como encontramos a casa. Foi exatamente como o homem contou ao seu filho que, na verdade, é nosso filho mais novo, Andryushka.” – Larissa Tarkovskaja

Um dos grandes destaques do documentário é o conflito que aconteceu após as filmagens da sequência final, o incêndio da casa do protagonista. Preparativos meticulosos foram necessários, pois a casa/cenário foi realmente incendiada para ser gravada em um longo plano-sequência. No entanto, a câmera travou por alguns segundos durante a filmagem. Tarkovski não admitiu editar a sequência, ameaçando, inclusive, que o filme não seria lançado caso não fosse possível repetir a filmagem. A equipe conseguiu financiamento para reconstruir a casa e o diretor de fotografia Sven Nykvist resolveu usar duas câmeras, em dois trilhos, um mais elevado do que outro, como segurança. Tudo deu certo, as imagens mostram a equipe exultante e um Tarkovski pleno de emoções indefiníveis após a palavra “corta”.  

O final, emocionante, mostra Tarkovski durante o processo de tratamento do câncer que o mataria, poucos meses após as conclusões de O sacrifício, já acamado, discutindo com a equipe aspectos de pós-produção do filme, como o tratamento de cor. Com certeza, Dirigido por Tarkovski é um dos melhores documentários sobre o cinema já realizados. 

Dirigido por Andrei Tarkovski (Regi: Andrei Tarkovski, Suécia, 1988), de Michal Leszczylowski.

Pauline na praia

Marion está em processo de separação. Ela viaja de férias para uma praia na Normandia, junto com a sobrinha Pauline, de 15 anos. A estada das duas é marcada por relacionamentos amorosos que se confundem: o surfista Pierre tem uma antiga paixão por Marion; Marion se envolve com Henri, um notório sedutor; Pauline começa um relacionamento com o jovem Sylvain, mas é assediada por Henri; Henri se envolve com a vendedora Rosette, que acaba complicando o namoro de Sylvain…

Da série Comédias e provérbios (Quem muito fala, prejudica a si mesmo) essa espécie de ciranda de relacionamentos tem a marca de Éric Rohmer. As levezas dos belos corpos ao sol e dos romances nas camas são tratados de forma natural, mesmo quando entram em terrenos perigosos, como o fascínio que Pauline exerce sobre os homens mais velhos. O portão da casa de praia que se abre no início e se fecha no final demarca a natureza desses encontros, desses embates amorosos: coisas do verão. 

Pauline na praia (Pauline à la plage, França, 1983), de Éric Rohmer. Com Amanda Langlet (Pauline), Arielle Dombasle (Marion), Pascal Greggory (Pierre), Féodor Atkine (Henri), Simon de La Brosse (Sylvain), Rosette (Louisette). 

As 4 aventuras de Reinette e Mirabelle

Mirabelle está passeando no campo e conhece Reinette, moradora da região. As duas passam uma noite na casa de Mirabelle e resolvem alugar um apartamento juntas em Paris. As quatro aventuras do título são narradas em episódios. No primeiro, Reinette tenta mostrar a Mirabelle a encantadora hora azul, quando por alguns segundos na madrugada o silêncio toma conta da paisagem campestre. Os três outros episódios acontecem em Paris. 

Reinette tem um confronto com um garçom de um mau humor hilário. As jovens amigas, em andanças por Paris, se deparam com um mendigo, uma pedinte de dinheiro na estação de metrô, e uma cleptomaníaca que rouba alimentos de um supermercado. Por fim, a história mais engraçada e cativante: Reinette, com a ajuda de Mirabelle, tenta vender um de seus quadros a um marchand, dono de uma pequena galeria de arte. 

O humor dita o tom das narrativas nas quatro aventuras. Mirabelle e Reinette se cruzam com uma galeria de personagens bem ao estilo Rohmer, motivando reflexões e diálogos sobre esse fascinante cotidiano dos jovens. 

As 4 aventuras de Reinette e Mirabelle (4 aventures de Reinette et Mirabelle, França, 1987), de Éric Rohmer. Com Joelle Miguel (Reinette), Jessica Forde (Mirabelle), Fabrice Luchini (Marchand).

Um casamento perfeito

O provérbio que abre a narrativa é “Qual o espírito que não divaga? Quem não constrói castelos na Espanha?” Quem divaga sobre castelos na Espanha é Sabine, estudante de arte, que, logo no início, tem uma desilusão amorosa com seu amante, um pintor casado. Ela decide então se casar, mesmo sem um pretendente. Quando o advogado Edmond, charmoso e livre, entra em cena, Sabine tem certeza de ter encontrado seu noivo. 

O centro da trama é Sabine, personagem que age motivada por seus desejos, mesmo sabendo da impossibilidade de realizá-los plenamente. A comédia dita o tom da narrativa, Sabine oscila entre atitudes ingênuas e impulsivas para conquistar Edmond e entre momentos de tristeza e depressão. É mais uma personagem da galeria de rostos fascinantes de Éric Rohmer, que vivem de encontros fortuitos na vida cotidiana das cidades, se deixando levar de forma despretensiosa, natural, pelos acasos. Em Um casamento perfeito esse acaso se manifesta de forma apaixonante na estrutura circular da narrativa: o início e o final com Sabine dentro de um trem. 

Um casamento perfeito (Le beau mariage, França, 1982), de Éric Rohmer. Com Béatrice Romand (Sabine), André Dussollier (Edmond), Arielle Dombasle (Clarisse), Sophie Renoir (Lise), Féodor Atkine (Simon). 

Mirch Masala

Na Índia colonial, o exército percorre os povoados cobrando impostos da população. O conflito se instaura em uma pequena aldeia quando o General exige que a bela Sonbai (seu marido está ausente, trabalhando em uma estrada de ferro) se entregue a ele. Além de recusar, ela esbofeteia o General e, em fuga, se refugia, junto com outras mulheres, em uma fábrica de pimenta.

A narrativa de Ketan Mehta revela a face cruel de uma sociedade que se diz protetora dos valores da família. Os homens da aldeia se submetem às exigências do General e, quando confrontados moralmente (é seu dever proteger suas mulheres) abaixam a cabeça em sinal de subserviência e humilhação. A resistência se mostra no ato heróico do guardião da fábrica e na virada final, quando as mulheres se unem em um retumbante gesto de autodefesa e protesto. Um filme relevante, principalmente neste momento, quando os valores conservadores da sociedade patriarcal voltam novamente suas garras contra as mulheres. 

Mirch Masala (Índia, 1986), de Ketan Mehta. Com Smita Patil (Sonbai), Naseeruddin Shah (Subeber), Om Puri (Abu Miya). 

A casa e o mundo

Bimala segue os preceitos determinados pela rígida sociedade indiana. É casada com o rico Nikhil e vive reclusa na mansão, na ala destinada às mulheres. Seu marido tem ideias progressistas a respeito da emancipação das mulheres e a incentiva a deixar a reclusão e conhecer seu amigo Sandip, um líder nacionalista que luta conta a colonização britânica na Índia. 

Bimala e Sandip desenvolvem, a princípio, uma relação comum a respeito das ideias nacionalistas. No entanto, essa relação caminha passo a passo para a atração física que ganha contornos irresistíveis e imprevisíveis, diante da conturbada situação política do país. 

A narrativa do aclamado diretor Satyajit Ray tem como contexto a Índia do início do século XX, quando os movimentos nacionalistas ganharam força. Ao mesmo tempo, a trama aponta questões que repercutem ainda hoje, como a divisão de castas indianas, a situação da mulher, oprimida pela cruel dominação masculina. O final trágico deixa pouco espaço para a esperança. 

A casa e o mundo (Ghare-Baire, Índia, 1984), de Satyajit Ray. Com Soumitra Chatterjee (Sandip), Victor Banerjee (Nikhl)), Swatilekha Sengupta (Bimala), Gopa Aich (A irmã).