A caminho da loucura (Heller wahn, Alemanha, 1983), de Margarethe von Trotta.
Olga (Hanna Schygulla) é uma professora universitária de bem com a vida, vive sua liberdade, incluindo um relacionamento amoroso tranquilo, sem as amarras das convenções ou sociais. Ruth (Angela Winkler), ao contrário, vive em conflito interno, sofrendo com um marido possessivo. Ela tenta vencer a depressão se dedicando à pintura, sempre solitária. O relacionamento entre as duas começa quando, numa casa de campo, Olga impede Ruth de cometer suicídio.
A diretora e atriz Margarethe von Trotta, uma das expoentes do novo cinema alemão, trata com delicadeza e sensibilidade, bem ao estilo de seu olhar feminino e feminista, a intensa relação entre Olga e Ruth. É um filme sobre amizade, sobre mulheres que lutam para se libertar das convenções impostas, sobre a depressão e possibilidades de fuga.
O estado das coisas (Der stand der dinge, Alemanha, 1982), de Wim Wenders.
Wim Wenders dirigiu Hammett (1982), história ficcional baseada na vida do escritor Dashiell Hammett. O filme foi produzido por Francis Ford Coppola, que se desentendeu com o diretor alemão na fase de pós-produção. Coppola não ficou satisfeito com o primeiro corte e dirigiu a refilmagem de diversas cenas, reeditando o filme.
Frustrado com a experiência em Hollywood, Wim Wenders realizou, no mesmo ano de Hammett, O estado das coisas. O filme é uma reflexão pessoal sobre o processo autoral de fazer cinema e as dificuldades impostas pela necessidade de financiamento.
A equipe, liderada pelo diretor Friedrich Munro (Patrick Bauchau), está no litoral de Sintra, filmando uma história passada em um futuro distópico que dizimou grande parte da população. O título Os sobreviventes é uma metáfora do sacrifício a que os cineastas se impõem – em alguns momentos os membros da equipe são chamados de os sobreviventes. As filmagens são paralisadas pois Gordon, produtor americano da obra, está em Los Angeles e não envia mais o dinheiro necessário para comprar a película e pagar a equipe.
Durante a espera, os integrantes se isolam no hotel desativado e decrépito à beira-mar que é utilizado para locação de Os sobreviventes. Roteirista, atores e atrizes, equipe técnica, cada um à sua maneira tenta vencer o tédio da espera e lidar com suas frustrações no mundo do cinema. Fritz resolve ir para Los Angeles à procura do produtor e se depara com um esquema perigoso do quai participam importantes figuras de Hollywood.
A estrutura narrativa de O estado das coisas é a forma de Wim Wenders refletir sobre a sua decepcionante ida para Hollywood e os conflitos permanentes entre o cinema autoral e comercial. O filme é também uma homenagem a esses realizadores sobreviventes: Roger Corman e Samuel Fuller atuam em participações especiais e o nome do diretor, Friedrich Munro, é uma referência ao grande Friedrich Murnau.
Elenco: Allen Garfield (Gordon), Samuel Fuller (Joe), Isabelle Weingarten (Anna), Rebecca Pauly (Joan), Jeffrey Kine (Mark), Patrick Bauchau (Friedrich Munro).
Mishima: uma vida em quatro tempos (Mishima: a life in four chapters, EUA, 1985), de Paul Schrader.
Considerado um dos maiores escritores do japão, Yukio Mishima teve uma vida controversa, com tentativas de conciliação entre sua arte e sua vida pessoal. A filmografia de Paul Schrader é um experimento narrativo e estético que entrelaça as diversas facetas, máscaras, do diretor.
O filme começa no último dia de vida de Mishima (Ken Ogata), quando ele e quatro jovens vestem seus trajes militares e se encaminham ao quartel do exército para um ato rebelde. Flashbacks alternados e fragmentados retratam a infância e juventude do escritor, com fotografia em preto e branco, e encenações de três de suas famosas obras: O templo do pavilhão dourado, A casa de Kyoto e Cavalos em fuga. As encenações acontecem em cenários minimalistas e suntuosos em termos de cores e direção de arte.
A narrativa, dividida em quatro atos, passa por importantes momentos do Japão pós-guerra, quando o país assumia a modernidade em detrimento de suas tradições. Paul Schrader apresenta a personalidade conflituosa de Mishima por meio de um roteiro engenhoso, arte e vida se misturando, se entrelaçando, completando uma à outra. O gesto final de Mishima, encenado de duas maneiras, demarca o conflito do artista/pessoa de forma perturbadora.
Jane B. por Agnès V. (França, 1988), de Agnès Varda.
Em 1988, Jane Birkin estrelou o polêmico e ousado filme Kung Fu Master, dirigido por Agnès Varda. As filmagens foram realizadas na casa de Jane Birkin, em Londres. Durante as filmagens, a consagrada modelo, atriz e cantora revelou à Agnes Varda seu medo de completar 40 anos. Diretora e atriz fizeram, então, um projeto paralelo à Kung Fu Master: o documentário, mescla de realidade e ficção, Jane B. por Agnès V.
A estrutura fragmentada do filme intercala reflexões de Jane Birkin sobre sua carreira e seus relacionamentos amorosos, principalmente com Serge Gainsbourg; pequenos trechos de filmes, imagens de arquivo, incluindo interpretações de famosas canções; participação ativa da diretora com perguntas ousadas. A parte ficção é uma série de esquetes nas quais Jane Birkin interpreta papéis famosos do cinema, como Joana D’Arc, Calamity Jane, Jane (Tarzan) e uma divertida simulação de O gordo e o magro, contracenando com Agnès Varda.
Agnès Varda sempre usou o termo documenteur para seus projetos, sugerindo a mistura de documentário e ficção, realidade e imaginação. O documentário conta com participações especiais de celebridades em alguns quadros: Jean-Pierre Léaud, Philippe Léotard e Serge Gainsbourg.
A participação de Jean-Pierre Léaud, famoso astro da nouvelle-vague francesa, surge após um diálogo divertido:
Agnès Varda: Com que atores gostaria de contracenar?
Jane Birkin: Com o Marlon Brando.
Agnès Varda: Caro demais! Um ator francês do mesmo gênero e mais barato.
Jane Birkin: Jean-Pierre Léaud. Ele tem um olhar desesperado que eu gosto muito, parece meio perdido. Eu prefiro as pessoas perdidas.
O sacrifício (Offret, Suécia, 1986), de Andrei Tarkóvski.
No começo do filme, Aleksander (Erland Josephson) está plantando uma árvore ressecada numa faixa de grama, entre o lago e um caminho. Enquanto planta, ele diz a um menino, seu filho: “Venha aqui, me ajude, Menino. Você sabe, uma vez, isso aconteceu há muito tempo, um ancião em um mosteiro – seu nome era Pamve – cravou da mesma forma, em cima de uma montanha, uma árvore seca e ordenou ao seu discípulo, o monge Ioann Kólov – o mosteiro era católico ortodoxo -, ordenou a ele para regar essa árvore todos os dias até que ela ressuscitasse… Coloque as pedras aqui… E assim, durante muitos anos todos os dias, pela manhã, Ioann enchia um balde com água e partia para a montanha, regava esse tronco e, à noite, voltava para o mosteiro no escuro. E assim foi por três anos inteiros. Eis que, um belo dia, ele sobe a montanha e observa: sua árvore estava toda coberta de flores… De qualquer jeito, falem o que quiser, mas o método, o sistema é uma coisa grandiosa! Você sabe, às vezes me parece que, se a cada dia, na mesma hora, se fizer a mesma ação – como um ritual – sistemática e invariavelmente -, cada dia, exatamente na mesma hora, sem falta – o mundo vai mudar. Alguma coisa vai mudar! Não pode deixar de mudar!”
Segundo Larissa Tarkovskaya, segunda esposa de Andrei Tarkovsky, o roteiro de O sacrifício foi escrito a partir de dois roteiros que Tarkovsky escreveu no final dos anos 70, intitulados A bruxa e A oferenda.
No dia em que planta a árvore, Aleksander, um jornalista, crítico de literatura e de teatro aposentado, reúne a família em sua casa, situada em uma ilha sueca, para celebrar seu aniversário. Assistindo à TV, todos ficam sabendo que estourou a Terceira Guerra Mundial e a catástrofe nuclear é iminente.
Aleksander, apesar de ter perdido a fé, promete a Deus um sacrifício se o mundo for poupado: “Eu entrego para o senhor tudo o que tenho, abandono a família que amo, destruo minha casa, deixo o Menino, vou ficar mudo, nunca mais irei falar com ninguém, recuso tudo o que me conecta com a vida. Apenas faça que tudo volte a ser como antes, como estava de manhã, como estava ontem, para que não haja esse medo animalesco e nauseante! Ajude, Deus, e eu faço tudo o que prometi ao Senhor.”
Mais tarde, Aleksander é incentivado pelo carteiro Otto a procurar Maria, uma empregada doméstica com poderes místicos: o ato de união sexual com ela poderia salvar a todos. A oferenda e a bruxa.
O sacrifício de Aleksander se concretiza na espetacular sequência final do filme. Aleksander põe fogo na própria casa. Tarkovsky filmou em um plano sequência em travelling de dez minutos, após a equipe incendiar a casa. A história é famosa: o primeiro plano sequência travou no meio e a equipe teve que reconstruir a casa em tamanho real para um novo incêndio. Na segunda tomada, o plano sequência, desta vez filmado com duas câmeras, teve sucesso.
No final do filme, o menino está sozinho à beira do lago. Ele repete o gesto de encher baldes e molhar a muda, plantada na véspera.. “Será que o homem tem alguma esperança de sobrevivência diante dos claros sinais de silêncio apocalíptico iminente? Talvez uma resposta para essa pergunta deva ser encontrada na lenda da árvore ressequida, desprovida da água da vida, na qual baseei esse filme que tem tamanha importância em minha biografia artística: o Monge, passo após passo e balde após balde, sobe a colina para regar a árvore seca, acreditando implicitamente que seu ato era necessário e em nenhum momento duvidando da sua crença no poder milagroso da sua fé em Deus. Viveu para assistir ao Milagre: certa manhã, a árvore explode em vida, os ramos cobertos de folhas novas. E esse ‘milagre’, sem dúvida, nada mais é que a verdade.” – Tarkovski.
Referências:
O sacrifício. Roteiro do filme de Andrei Tarkovsky. Andrei Tarkovski. São Paulo: Realizações Editora, 2012.
Parceiros da noite (Cruising, EUA, 1980), de William Friedkin.
Um corpo de um homem é encontrado dentro do Rio Hudson. Dois travestis são abordados por policiais à noite. Um deles é obrigado a praticar sexo oral com o policial. Em um quarto, um homem nu é amarrado pelo seu parceiro e esfaqueado até a morte.
As cenas de abertura definem o tom do thriller de William Friedkin: ousadia na composição da noite em becos, boates, quartos minúsculos, frequentados por homossexuais masculinos em Nova York. O detetive Steve Burns (Al Pacino) recebe a missão de se infiltrar disfarçado nesse submundo para desvendar a identidade do serial killer que mata seus parceiros da noite com requintes de crueldade.
O diretor abusa de imagens estereotipadas, o filme foi alvo de críticas severas da comunidade LGBTQ+ e muito mal recebido pela crítica. A narrativa segue os padrões do gênero, após a possível descoberta do assassino, o detetive começa um perigoso jogo psicológico com o suspeito, envolvendo desejo e sedução. O final em aberto provoca o espectador, motivando a revisão do filme para buscar as pistas que se espalham pela narrativa, tanto no desenvolvimento do protagonista como no uso sutil da linguagem audiovisual.
Elenco: Al Pacino (Steve Burns), Paul Sorvino (Capitão Edelson), Karen Allen (Nancy), Richard Cox (Stuart Richards), Don Scardino (Ted Bailey).
Diário para meus amores (Napló szerelmeimnek, Hungria, 1987) é a segunda parte da trilogia autobiográfica de Márta Mészáros. Julie rompe com sua tia Magda, com quem vive em constantes conflitos, e vai morar em Moscou, onde ingressa na Universidade para estudar cinema. É o início dos anos 50, a guerra fria recrudesce e a União Soviética passa a controlar com mão de ferro o leste europeu. Na Hungria, Janos é considerado traidor do partido e preso, mesmo sendo amigo pessoal da poderosa Marta.
O destaque da segunda parte é a ascensão dos ideais contra revolucionárias com os trabalhadores organizando movimentos e greves. A alter-ego de Márta Mészáros, Julie, começa a fazer documentários e se vê confrontada por professores e membros do partido devido a suas edições perigosas.
Diário para meus amores mantém o estilo ficção/documentário, a montagem fascinante coloca personagens do filme como se estivessem participando de passeatas, comícios e greves. As lembrança de Julie, quando viveu com seus pais em Moscou, são belos momentos estéticos, com a fotografia em preto e branco, principalmente da pedreira onde o pai escultor trabalhava. As imagens trazem beleza a momentos dolorosos de despedida.
Elenco: Zsuzsa Czinkóczi (Julie), Anna Polony (Magda), Jan Nowicki (Janos), Irina Kuberskaya (Anna Pavlova), Adél Kováts (Natasha), Gyula Bartus (Deszso).
Diário para meus filhos (Napló gyermekeimnek,Hungria, 1984), de Márta Mészáros, é o primeiro filme da trilogia semi biográfica da diretora húngara, composta por Diário para meus amores (1987) e Diário para meu pai e minha mãe (1990). A atriz Zsuzsa Czinkóczi, interpreta Julie nas três obras.
Em Diário para meus filhos, Julie é uma jovem adolescente que retorna a Budapeste após um tempo morando em Moscou. Sua mãe morreu vítima de uma doença e seu pai, um escultor, desapareceu nos porões do cruel regime stalinista.
Em Budapeste, Julie entra em conflito com Magda (Anna Polony), sua mãe adotiva, uma poderosa representante do partido comunista, mas encontra abrigo em Janos (Jan Nowicki), um antigo revolucionário descrente com os rumos do partido. Arredia à escola, a jovem passa suas tardes em salas de cinema.
É a história de Márta Mészáros, cujas lembranças compõem o retrato do pós-guerra na Hungria, marcado pela ascensão do partido comunista que, passo a passo, rompe com os ideais dos revolucionários e se consolida como um cruel e despótico governo totalmente sobre o controle stalinista. A diretora mescla a narrativa com cenas documentais de comícios, passeatas, manifestações, oscilando entre a fotografia em cores e preto e branco. Diário para meus filhos conquistou o Grande Prêmio Especial do Júri no Festival de Cannes.
O-Bi, O-Ba – O fim da civilização (O-Bi, O Ba. Koniec cywilizacji, Polônia, 1984), de Piotr Szulkin.
O filme apocalíptico de Piotr Szulkin se passa em uma terra destruída pela explosões nucleares. Cerca de oitocentos sobreviventes vivem em um abrigo chamado de A Cúpula, que ameaça desmoronar a qualquer momento. Resta apenas uma esperança: a chegada da Arca para levar os sobreviventes para um lugar que possivelmente ainda é seguro.
A lenda da Arca é mantida por meio de um rigoroso sistema de doutrinação, cujos responsáveis, entre eles Soft (Jerzy Stuhr), controlam de forma até mesmo violenta. A fome, doenças, revoltas, sabotagens, frio extremo, fazem parte do cotidiano dos habitantes da Cúpula. Piotr Szulkin continua com seu olhar crítico e severo sobre a Polônia dominada pelos regimes autoritários, compondo um ambiente opressivo, com tons fortes dos estilos expressionistas e cyberpunk.
O diretor polonês se consagrou com uma espécie de tetralogia futurista com claras alusões ao regime político de seu país: Golem (1979), A guerra dos mundos: próximo século (1981), O-Bi, O-Ba: o fim da civilização (1985) e Ga-ga: glória aos herois (1986).
O diretor polonês Piotr Szulkin dedicou A guerra dos mundos: próximo século (Wojna światów – Następne stulecie, Polônia, 1981) a H. G. Wells e Orson Welles. O motivo é uma homenagem à célebre narração que Orson Welles realizou em uma emissora de rádio em 1938 (30 de outubro, noite de Halloween) interpretando trechos do livro de Wells. O estilo de interpretação de Orson Welles provocou pânico em milhares de ouvintes que acreditaram que a terra estava sendo invadida pelos marcianos.
A narrativa de A guerra dos mundos: próximo século acontece na Polônia, véspera do ano novo. Um grupo de marcianos domina o país, necessitando de sangue dos terráqueos para viver. O protagonista Iron Ide (Roman Wilhelmi), um locutor de TV de programa sensacionalista, se vê envolvido em uma trama que envolve os marcianos e o poder do estado. As consequências envolvem censura, delação de colegas de trabalho, acirramento do controle do estado por meio do controle midiático, violência praticada pelos marcianos, sequestro e desaparecimento de pessoas.
O filme, claramente uma alegoria do poder do estado comunista na Polônia, segue a prática consagrada durante a guerra fria de inserir fortes questões ideológicas em filmes do gênero ficção científica. A fotografia noir acentura o estado de opressão e terrorismo que acompanha a narrativa, com um final que deixa em aberto essas obscuras tramas políticas.